domingo, 17 de abril de 2011

Celebrar para não esquecer

"Quid est ergo tempus? Si nemo ex me quaerat, scio; si quaerenti explicare velim, nescio: fidenter tamen dico scire me, quod si nihil praeteriret, non esset praeteritum tempus; et si nihil adveniret, non esset futurum tempus; et si nihil esset, non esset praesens tempus. Duo ergo illa tempora, praeteritum et futurum quomodo sunt, quando et praeteritum jam non est, et futurum nondum est? Praesens autem si semper esset praesens, nee in praeteritum transiret; jam non esset tempus, sed aeternitas."
Santo Agostinho, Confessionum

É interessante observar quantas festividades, mesmo em comunidades muito diversas, têm por objetivo não apenas comemorar mas, até onde possível, repetir algum grande evento do passado. E, quanto mais elaborado o ritual, mais o acontecimento em questão é traduzido em símbolos que, para as pessoas envolvidas, são plenos de significado, ainda que pareçam obscuros a quem "não faz parte do grupo". Isso vale para as cerimônias religiosas, é verdade, mas poderia ser estendido a muitos outros eventos - as paradas militares, por exemplo, não repetem elas, muitas vezes, o ímpeto do ir à batalha na qual eventualmente uma dada nação foi vitoriosa?
Pergunto-me o que há em nós, humanos, que nos leva a ritualizar, na tentativa de repetir o passado. É que, talvez, estejamos conscientes de que somos algo desmemoriados - acho que qualquer historiador tem boas razões para ter isso na conta de pecado mortal. Mas, ao eleger determinados acontecimentos para merecerem celebração, estamos sendo seletivos e, necessariamente, ao privilegiar alguns, relegamos outros ao esquecimento, deliberadamente ou não. Preservamos a memória de uma dada comunidade, mas uma memória selecionada e filtrada por nós mesmos.
Há ainda o fato de que tentamos (inutilmente, claro), controlar o tempo, e a suposta repetição, ano após ano, de um evento, nos dá a ilusória sensação de que podemos voltar ao passado quando e quanto quisermos, exercendo algum controle sobre ele. Tolice! Tinha muita razão Santo Agostinho ao entender que o tempo é daquelas coisas que sequer conseguimos definir, quanto mais controlar.
Enquanto escrevo, há som de sinos chamando às procissões do Domingo de Ramos (para falar a verdade, chega a ser surpreendente que ninguém tenha vindo até agora pedir um ramo das oliveiras do meu jardim...). Ano após ano, a celebração é repetida. Cumprem essas procissões a função de preservar a memória coletiva, tornando-se, para as comunidades que as celebram, um fator poderoso de agregação social. E, seja a festa voltada para a chamada "Semana da Paixão", para a lembrança da saída do Egito ou para qualquer outro momento que envolva, em algum nível, a repetição de fatos passados, estamos exercitando uma dimensão essencialmente humana, em luta contra nossas limitações temporais, simplesmente tentando não esquecer.


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2 comentários:

  1. Boa tarde, cara Marta!
    Acabo de conhecer, por esses dias, seu ótimo blog. E, à medida que vou lendo, vou igualmente gostando muito! Achei-o por conta de meu interesse sobre as grandes viagens portuguesas do século XV. E, nesta área, vi que escreveu vários textos. Não sou historiador e meu interesse é puramente amador ou quase isso (sou professor de sociologia e tenho um programa de rádio sobre livros), via Francisco Marins (um ótimo livro infanto juvenil sobre Fernão de Magalhães), Stefan Zweig (idem), Roger Crowley (o melhor que já li!), Damião Peres, etc.
    Lerei os arquivos que postou aqui e depois retorno com minhas impressões!
    Um abraço e obrigado pela generosidade!
    Fábio.

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    Respostas
    1. Olá, Fábio Viana, fiquei curiosa: qual é o seu programa de rádio? Em qual emissora? Achei fascinante a ideia de um programa sobre livros.
      Um abraço, obrigada por ler e comentar.

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