quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Um governador que comandou expedição contra indígenas

Eis aqui um assunto que levanta mais perguntas do que se pode responder. Aconteceu no Século XVIII, e disso se fala nos Anais Históricos do Estado do Maranhão, também conhecidos como "Anais de Berredo", do nome de seu autor, Bernardo Pereira de Berredo:
"[...] sucedeu o ano de 1715; mas o Senhor de Pancas, Cristóvão da Costa, livre já do cuidado da guerra da Europa, o empregou na do mesmo país; e para dar mais evidentes provas de que era tanto o zelo de que se enobrecia a sua atividade como militar o seu grande espírito, formando logo uma boa tropa para o castigo do gentio de corso da nação belicosa dos bárbaros, infestadores da Capitania do Maranhão, se declarou por seu comandante." (¹)
Os encômios de Berredo ao governador do Maranhão não conseguem disfarçar o que, de fato, acontecia. Uma vez que não era usual que governadores comandassem entradas ao sertão para combater indígenas, que interesse teria nisso Cristóvão da Costa, ao enfrentar tantos desconfortos em uma terra hostil, cheia de animais peçonhentos e insetos incômodos?
Lembrando, de passagem, que "gentio" era um modo usual, na época, de referência aos indígenas, e que "gentio de corso" era como se falava dos indígenas nômades, voltemos às palavras de Berredo, para saber em que foi dar essa óbvia expedição de apresamento de indígenas para escravização
"Como o general desta expedição o era do Estado, se adiantaram tanto as providências para ela, que saiu da cidade de S. Luís dentro de poucos dias; mas deixando todos aqueles moradores cheios de esperanças, as malogrou com muita brevidade a inconstância da guerra; porque fazendo um destacamento sobre os mesmos bárbaros, que encarregou ao sargento-mor João Nogueira de Sousa, quando este cabo, cercada já a populosa aldeia, a que se reduzia o principal corpo de sua nação, valorosamente se dispunha para a entrar à escala, um soldado de baixo nascimento, ou fosse por descuido, ou por malícia, disparou uma arma, e avisados eles do estrondo do tiro, fugiram quase todos ao perigo que os ameaçava, amparados também das sombras da noite com o conhecimento do terreno." (²)
As esperanças dos moradores, ainda que não explícitas no que escreveu Berredo, só poderiam ser as de, em poucos dias, terem à disposição número considerável de novos escravizados. Outras perguntas daí decorrem, porém: se os tais indígenas, "bárbaros", eram "gentio de corso", o que estariam fazendo aldeados? A menos que por aldeia se deva entender apenas um acampamento, há nisso evidente contradição. O que há de mais encantador, contudo, é que Berredo admite que o "soldado de baixo nascimento" pode ter disparado, não por acidente, mas "por malícia", ou seja, intencionalmente, para advertir os indígenas. Seja como for, trata-se de um dos poucos episódios em que um tiro que não saiu pela culatra fez com que toda uma expedição "saísse pela culatra". Os indígenas, é claro, deram no pé, e fizeram muito bem.
 
(1) BERREDO, Bernardo Pereira de. Anais Históricos do Estado do Maranhão. Lisboa: Oficina de Francisco Luiz Ameno, 1749, p. 676.
(2) Ibid. 


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