A preocupação com a vida após a morte era, como se sabe, um aspecto muito importante na cultura do Egito Antigo. As evidências disso podiam ser notáveis - pirâmides e outros túmulos espetaculares de gente muito importante - mas tinham também uma outra face, menos espalhafatosa, claro, nas aspirações de camponeses e artesãos que também desejavam uma mumificação, por mais simples e barata que fosse, para que também eles, segundo o ideário vigente, tivessem alguma possibilidade de retomar a vida no além, depois do julgamento diante dos deuses, coisa que, de acordo com suas crenças, todo mundo, até mesmo o faraó, precisaria enfrentar.
Curiosamente, no entanto, a perspectiva nutrida pelas camadas sociais inferiores do Egito não apresentava nenhuma ideia de redenção social e/ou econômica post mortem: faraós, no Além, continuariam a ser faraós, com direito a todos os privilégios que haviam desfrutado em sua vida terrestre, e era por isso mesmo que deviam ser sepultados com trono, carruagem, embarcação e outros tesouros que tivessem; por seu turno, camponeses continuariam a ser apenas camponeses, com a vidinha modesta de camponeses, apenas plantando e colhendo com mais facilidade, com cereal mais abundante, que crescia muito mais que na Terra... Nada, portanto, que pudesse, nem mesmo remotamente, remeter ao idílico paraíso das religiões monoteístas. (*)
A propósito do julgamento a que todo morto obrigatoriamente comparecia, vale recordar que o processo era este: o falecido, levado à presença de Osíris, era testado quanto a ser uma pessoa que nós chamaríamos "de bem", de modo que seu coração, pesado em balança, apresentasse um perfeito equilíbrio com a "pena da verdade". Ocorre que a "gente de bem", aqui da terra, logo encontrou um modo de supostamente ludibriar os deuses no julgamento, mediante uma coleção de fórmulas mágicas e encantamentos que, em conjunto, são hoje conhecidas como o "Livro dos Mortos". Poderíamos, talvez, falar em tentativas de corrupção além-túmulo?
(*) O fato de que nem mesmo após a morte pudesse haver algum tipo de "revolução" social talvez funcionasse como tentativa de dissuasão para rebeliões na vida terrestre. Afinal, se os deuses não alteravam a ordem vigente ainda após a morte, por que supor que deveria haver alguma mudança por aqui mesmo? Vale lembrar, no entanto, que o argumento podia funcionar em sentido contrário: se o status terrestre era preservado após a morte, não seria melhor batalhar por algum tipo de ascensão que, depois, perduraria? Talvez isso ajude a explicar, ideologicamente, a quantidade notável de rebeliões de todo tipo ocorridas no Egito ao longo dos séculos.
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