domingo, 30 de março de 2014

Importância da fotografia como memória do passado

Antes da fotografia, alguém podia dizer que tinha uma memória "visual" do passado - estritamente pessoal - com as cenas que alegava guardar dentro da própria cabeça, que podiam ser descritas com palavras mas que não podiam ser visualizadas por mais ninguém. Ora, para efeitos práticos, essas reminiscências morriam com o respectivo portador.
Nesta cena do Egito, publicada em 1575 na
Cosmographie de Thevet,
pode-se notar que 
fidelidade
ao original não era um ponto forte
da imagem (*)
Além disso, externamente a cada ser humano, havia desenhos e pinturas feitos com a aplicação das mais diversas técnicas (ou, não raro, quase sem nenhuma...), mas todos sabemos o quanto desenhos e pinturas podem acabar longe da realidade, de acordo com o maior ou menor grau de imaginação que um artista põe em seu trabalho. Sim, a fotografia também não está livre disso, mas, nesse caso, trata-se um fenômeno um pouco diferente. Alguém pode, usando um software apropriado, editar um retrato para que alguém adquira uma aparência condizente com os padrões de beleza mais valorizados do momento; já um desenhista e/ou pintor pode retratar alguém de um modo um tanto diverso do modelo sem a intenção de fazê-lo, apenas porque não é capaz de realizar um trabalho melhor. Pode também - por que não? - embelezar um retratado intencionalmente.
De qualquer modo, a fotografia veio a ser um acréscimo significativo ao patrimônio de memórias pessoais e familiares. Poucos humanos têm, hoje, algum tipo de retrato de seus tetravós (quando lhes sabem os nomes), mas não há dúvida de que os tetranetos da atual geração poderão ter boas imagens de seus ancestrais, e em uma quantidade que há vinte ou trinta anos seria inimaginável.
Em Dom Casmurro, de Machado de Assis, há um belo trechinho no qual Bento (ou Bentinho, se quiser), personagem-narrador, fala de um retrato (pintura) que tinha dos pais, para depois contrapô-lo à noção de fotografia instantânea, coisa que já fazia parte do universo dos dias de Machado:
"Tenho ali na parede o retrato dela, ao lado do marido, tais quais na outra casa. A pintura escureceu muito, mas ainda dá ideia de ambos. Não me lembra nada dele, a não ser vagamente que era alto e usava cabeleira grande; o retrato mostra uns olhos redondos, que me acompanhavam para todos os lados, efeito da pintura que me assombrava em pequeno. O pescoço sai de uma gravata preta de muitas voltas, a cara é toda rapada, salvo um trechozinho pegado às orelhas. O de minha mãe mostra que era linda. Contava então vinte anos, e tinha uma flor entre os dedos. No painel parece oferecer a flor ao marido. O que se lê na cara de ambos é que, se a felicidade conjugal pode ser comparada à sorte grande, eles a tiraram no bilhete comprado de sociedade.
[...]. São retratos que valem por originais. O de minha mãe, estendendo a flor ao marido, parece dizer: "Sou toda sua, meu guapo cavalheiro!" O de meu pai, olhando para a gente, faz este comentário: "Vejam como esta moça me quer..." Se padeceram moléstias, não sei, como não sei se tiveram desgostos: era criança e comecei por não ser nascido. Depois da morte dele, lembra-me que ela chorou muito; mas aqui estão os retratos de ambos, sem que o encardido do tempo lhes tirasse a primeira expressão. São como fotografias instantâneas da felicidade."
Assim, leitor, resta recomendar-lhe, aqui, que guarde bem suas memórias fotográficas, para bem de si mesmo e de seus descendentes. Vivemos em dias nos quais se fotografa de tudo e não se preserva nada. Menos fotos, talvez, porém melhores e mais bem guardadas, podem resultar em um futuro no qual as memórias fotográficas ainda tenham seu lugar.

(*) THEVET, André. Cosmographie Universelle vol. 1. Paris: Guillaume Chaudiere, 1575.


Veja também:

2 comentários:

  1. Concordo plenamente consigo, Marta. Hoje banalizamos demais a imagem. Lindo excerto esse que escolheu, do Dom Casmurro.
    E finalmente consegui registar-me como seguidora (O Berço do Mundo, sem avatar).
    Beijinho, um doce restinho de domingo
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    Respostas
    1. Meus agradecimentos... Por aqui, ainda anoitece, o domingo dura um pouco mais. Vem aí uma segunda-feira cinzenta, pelo jeito das nuvens :-D

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