segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

O que eles disseram sobre a História

Hoje, leitores, faremos uma rápida excursão pelo que alguns autores (historiadores ou não), disseram sobre a História. Faremos, também, breves reflexões sobre suas ideias. Espero que gostem e que compartilhem suas impressões.

1. Alexandre Herculano, no Século XIX, disse, na voz de uma de suas personagens: "Boa coisa é a história [...] quando nos recordamos do nosso passado, e não achamos lá para colher um único espinho de remorso!" (¹)
A recordação de que Herculano viveu no Século XIX não é mera informação. O tempo em que alguém vive é fator importante na visão que tem da História. Falava ele, é claro, da história no plano pessoal, mas pergunto: a diferença em relação à história nacional e/ou mundial será apenas uma questão de grau ou de abrangência?

2. Vamos agora a Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas:
"Vê o Cavour; foi a ideia fixa da unidade italiana que o matou. Verdade é que Bismarck não morreu; mas cumpre advertir que a natureza é uma grande caprichosa e a história uma eterna loureira. Por exemplo, Suetônio deu-nos um Cláudio, que era um simplório - ou "uma abóbora" como lhe chamou Sêneca - e um Tito, que mereceu ser as delícias de Roma. Veio modernamente um professor e achou meio de demonstrar que dos dois Césares, o delicioso, o verdadeiro delicioso, foi o 'abóbora' de Sêneca. E tu, madama Lucrécia, flor dos Bórgias, se um poeta te pintou como a Messalina católica, apareceu um Gregorovius incrédulo que te apagou muito essa qualidade, e, se não vieste a lírio, também não ficaste pântano. Eu deixo-me estar entre o poeta e o sábio.
Viva pois a história, a volúvel história que dá para tudo [...]."
Ora, "a volúvel história"... É fato que, de vez em quando, aparece alguém com uma visão completamente diferente de algum acontecimento, época ou personagem. Chama-se, a isso, revisionismo (está na moda). Deixando de lado a questão da serventia política das revisões da História, é preciso reconhecer que autores antigos, nos quais se baseia muito do que sabemos, escreviam, como é óbvio, segundo pontos de vista pessoais, e as pesquisas podem, eventualmente, demonstrar que nem tudo foi exatamente como disseram. Portanto, é prudente reconhecer que estudos podem revelar facetas insuspeitas do passado, que contribuem para enriquecer nosso conhecimento - até que mais se descubra. Isso não dispensa, contudo, o mais saudável ceticismo em relação às propostas revisionistas. Discernimento, conhecimento e bom senso são valiosos também neste caso.

3. Na Antiguidade, Políbio de Megalópolis escreveu: "Tanto quanto um animal sem olhos não tem serventia, a História sem verdade não passa de uma narrativa improdutiva." Quanto ao trabalho do historiador, disse: "Um historiador tem por obrigação relatar à posteridade tanto o que pode desonrar e trazer descrédito quanto o que pode enaltecer alguém." E mais: "Um historiador não deixa de ser mentiroso quando omite aquilo que de fato aconteceu." (²)
Deduz-se que, para Políbio, qualquer manipulação da História, independentemente do motivo, era má em si mesma. Olhando para a montanha de obras historiográficas que a humanidade tem produzido, talvez se possa concluir que suas ideias não tiveram tantos adeptos quanto seria desejável. Mas é possível a um historiador ser absolutamente imparcial? Será que o próprio Políbio, grego que era, mas apaixonado por Roma e suas realizações militares, chegou a ser tão isento quanto imaginava? Lembremo-nos, também, de que as palavras podem, com o correr do tempo, assumir significados que jamais foram intenção de seus autores.

4. Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, autor setecentista que discorreu sobre as origens e desenvolvimento da catequese e dos conventos franciscanos no Brasil, afirmou:  "É a verdade alma da História, e é a clareza a vida desta alma, e é certo que virá a ser alma sem vida, História, ainda que com verdade, sem clareza." (³) 
Já dissecaram a citação, leitores? A princípio, pode parecer que, em essência, Jaboatão disse algo semelhante ao que escreveu Políbio, mas a ênfase é outra: não basta verdade, é preciso haver clareza. Como vocês sabem, isto requer o talento na escrita, a facilidade na expressão, habilidades que podem e devem ser aprendidas e cultivadas, não apenas por historiadores, é certo, mas por quem quer que se dirija ao público.

5. Vou terminar com uma citação do Visconde de Porto Seguro, Francisco A. de Varnhagen: 
"O historiador que esquadrinha os fatos e que, depois de os combinar e meditar sobre eles, os ajuíza com boa crítica e narra sem temor nem prevenção, não faz mais do que revelar ao vulgo verdades que ele naturalmente acabaria por avaliar do mesmo modo, sem os esforços do historiador, dentro de um ou dois séculos." (⁴) 
Nascem daí algumas questões:
  • Não ficariam os acontecimentos esquecidos, em um ou dois séculos, sem o trabalho do historiador?
  • O vulgo terá interesse pela História?
  • Não irá o futuro demonstrar, ao menos em alguns casos, que as coisas se passaram de modo muito diferente do avaliado por um historiador que vivenciou os acontecimentos?

A visão que um historiador tem da História determina, em grau muito elevado, as características de sua obra. Reflitam, leitores, e deem suas opiniões. Qualquer dia volto a este assunto.

(1) HERCULANO, Alexandre. Lendas e Narrativas vol. 1. Lisboa: Bertrand e Filhos, 1851, p. 46.
(2) POLÌBIO, HistóriaOs trechos citados foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) JABOATÃO, Antônio de Santa Maria O.F.M. Novo Orbe Serafico Brasilico, ou Crônica dos Frades Menores da Província do Brasil Primeira Parte, Volume II. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense, 1858, p. 18.
(4) VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 2, 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, pp. 1116 e 1117.


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