quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Por que o padre Vieira não consentia que indígenas carregassem missionários em redes

Redes, se é que assim se pode dizer, eram um meio de transporte muito comum no Brasil Colonial: dois indivíduos fortes carregavam um terceiro que ia deitado ou sentado na rede, sendo esta apoiada nos ombros dos carregadores mediante uma longa vara, à qual eram presas as extremidades da rede. Já tratei deste assunto aqui no blog.
Figuras de destaque na administração colonial raramente punham os pés no chão. Dispunham de pessoas - escravos, quase sempre - que se encarregavam de sair carregando as ilustres personalidades para onde desejassem ir. Por sua vez, qualquer indivíduo que tivesse dois ou mais escravos fazia questão de ser carregado. Era indício de respeitabilidade e posição social. As cadeirinhas de arruar somente mais tarde chegaram ao Brasil. 
Sendo tão generalizado o costume, não surpreende que até religiosos se deixassem carregar em redes. Na Narrativa Epistolar de Uma Viagem e Missão Jesuítica, escrita pelo padre Fernão Cardim (¹), somos informados de que Cristóvão de Gouvêa, visitador jesuíta que percorreu colégios e missões no Brasil entre 1583 e 1590, deixou-se carregar em rede por indígenas, provavelmente entendendo que, quando ameríndios faziam isto, demonstravam respeito e consideração:
"Quis o padre [Cristóvão de Gouvêa] ver as aldeias dos índios brevemente para ter alguma notícia delas: partimos para a aldeia do Espírito Santo, sete léguas da Bahia, com alguns trinta índios, que com seus arcos e flechas vieram para acompanhar o padre, e revezados de dois em dois o levaram numa rede, os mais companheiros íamos a cavalo [...]." (²)
Nem todos os religiosos tinham a mesma atitude. A crermos no que escreveu o padre Simão de Vasconcelos em Vida do Venerável Padre José de Anchieta, o missionário canarino (³), tão afeito às viagens com vistas à catequese, nunca aceitava ser conduzido em rede:
"Jamais nestas tão frequentes missões andou a cavalo, nem ainda em rede, costume do Brasil, sempre a pé, com seu bordão na mão, e, posto que começava os caminhos calçado, em passando lugares públicos de gente, se descalçava logo, e ia a pé descalço." (⁴)
Indígenas é que andavam descalços - teria Anchieta decidido viver como eles, para mais facilmente catequizá-los? Ou teria compreendido que, para viver no Brasil, era preciso adotar o estilo de vida dos "brasis" (⁵)? Talvez quisesse economizar os sapatos, tão dispendiosos nos primeiros tempos da colonização? É provável que tudo isso tivesse lá sua parte no costume de Anchieta.
Já no Século XVII, outro missionário jesuíta iria ainda mais longe ao lidar com o tal costume vigente entre colonizadores que se faziam transportar em redes. Falo do padre Antônio Vieira, que, além de notável pregador, foi um missionário dedicado e, nesse ofício, proibiu a todos os subordinados que aceitassem ser carregados pelos índios, a não ser no caso de que algum religioso estivesse muito doente. A exceção é facilmente explicável, uma vez que naquele tempo não havia ambulâncias, nem terrestres e muito menos aéreas. De acordo com o também jesuíta José de Moraes, em História da Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará (⁶), "estas missões [no Maranhão] pela maior parte as faziam os padres a pé, e com inexplicável trabalho, e posto que os índios, para os aliviarem do caminho, lhes ofereciam com as redes os ombros, como é costume naquelas terras, nunca quiseram aceitar a comodidade das jornadas à custa do suor dos índios [...]; porque era máxima do padre Vieira que o pastor é o que havia de carregar aos ombros as ovelhas, e não estas ao pastor, por cuja razão ordenou, e o mesmo praticava sempre consigo, que nenhum usasse de rede pelos caminhos, salvo se a necessidade ou enfermidade o pedisse". (⁷)
Entre a população em geral, o costume de se fazer carregar em uma rede desapareceu aos poucos, len-ta-men-te. Não obstante, no Século XIX ainda era possível encontrar redes para alugar no Rio de Janeiro, capital do Império do Brasil. 

Homem de condição livre sendo transportado em rede por dois escravos,
de acordo com Debret (⁸)

(1) Fernão Cardim foi testemunha ocular dos acontecimentos que descreveu, por ter acompanhado o padre visitador em suas andanças pelo Brasil.
(2) CARDIM, Pe. Fernão S. J. Narrativa Epistolar de Uma Viagem e Missão Jesuítica. Lisboa: Imprensa Nacional, 1847, pp. 13 e 14.
(3) Nascido nas Canárias em 1534, Anchieta veio ao Brasil em 1553, onde permaneceu até sua morte em 1597.
(4) VASCONCELOS, Pe. Simão de S. J. Vida do Venerável Padre José de Anchieta. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1672, p. 183.
(5) Autores dos tempos coloniais referiam-se aos indígenas como "brasis".
(6) A primeira edição foi publicada em 1759, mesmo ano em que o autor foi deportado para o Reino, no contexto das restrições e posterior extinção da Companhia de Jesus. É fácil, portanto, compreender o tom de defesa das missões jesuíticas que perpassa toda a obra.
(7) MORAES, José de S.J. História da Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará. Rio de Janeiro: Typographia do Commercio, 1860, p. 393.
(8) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Democraticamente, comentários e debates construtivos serão bem-recebidos. Participe!
Devido à natureza dos assuntos tratados neste blog, todos os comentários passarão, necessariamente, por moderação, antes que sejam publicados. Comentários de caráter preconceituoso, racista, sexista, etc. não serão aceitos. Entretanto, a discussão inteligente de ideias será sempre estimulada.