quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Passeio de rede - Parte 1

Partiu nesse mesmo dia, dentro de uma rede, com direção à Vila do Paço. Mas o terrível beribéri subia sempre; os membros por onde ele atravessava iam ficando paralisados e frios como membros de defunto. A onda maldita galgara finalmente a caixa torácica, Vasconcelos não pôde respirar de todo e morreu.
Amélia, ao receber a inesperada noticia, rebentou num berreiro e tratou de cobrir-se de luto fechado.
                                                                                                       Aluísio Azevedo, Casa de Pensão

Redes foram e são usadas por indígenas do Brasil para dormir (¹). Bandeirantes, que devem ter aprendido o hábito com os indígenas, também usavam redes, que eram amarradas entre duas árvores, sempre que se parava para estabelecer lugar de pouso. Em redes dormiam, frequentemente, os escravos nas senzalas, e muitas vezes até a família dos senhores na casa-grande. E, verdadeiro ícone do repouso, mas também da preguiça, é a famosa imagem de uma praia, céu impecavelmente azul, dois coqueiros e, entre eles, uma rede bem confortável, sem desconsiderar um copo de suco gelado. O que nem todo mundo sabe é que as redes já tiveram outro uso no Brasil.
Durante séculos, a pessoa que não fosse suficientemente afortunada para ter uma cadeirinha de arruar ou uma liteira, mas ainda assim dispusesse de dois escravos, costumava fazer-se carregar pela cidade ou em pequenas viagens em nada mais, nada menos, que uma rede. Tanto assim que, no intuito de elogiar Matias de Albuquerque, líder das forças luso-brasileiras na guerra contra os holandeses na Bahia, Frei Vicente do Salvador escreveu:
"Foi Matias de Albuquerque todo o tempo que serviu, assim de Capitão-mor de Pernambuco como de Governador Geral do Brasil, que foram sete anos, sempre muito limpo de mãos, não aceitando coisa alguma a alguém, nem tirando ofícios para dar a seus criados. Nas ocasiões de guerra e do serviço de Sua Majestade foi muito diligente, não se poupando de dia nem de noite ao trabalho; nunca quis andar em rede, como no Brasil se costuma, senão a cavalo, ou em barcos, e quando nestes entrava não se assentava, mas em pé os ia ele próprio governando." (²)
Nunca quis andar em rede!

Homem sendo transportado em rede por seus escravos, segundo Debret (³)

Finalmente, fica por dizer que, no interior do Brasil era costume, em outros tempos, quando não se dispunha de caixão apropriado, que os mortos fossem sepultados envolvidos por uma rede - a mesma, aliás, que era usada para conduzi-los ao túmulo, hábito esse também muito provavelmente de origem indígena, já que havia tribos que enterravam seus mortos com os pertences de que haviam se servido em vida, o que incluía, com toda certeza, a rede de dormir.

Doente sendo transportado em rede, segundo H. Florence (⁴)

(1) Diz Pero de Magalhães Gândavo, em seu Tratado da Terra do Brasil:
"A maior parte das camas do Brasil são redes, as quais armam numa casa com duas cordas e lançam-se nelas a dormir. Este costume tomaram dos índios da terra."
(2) SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil.
(3) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, vol. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(4) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Senado Federal, 2007. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. Neste caso, refere-se a um membro da Expedição Langsdorff. Muitos dos expedicionários foram vitimados por febres tropicais. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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2 comentários:

  1. CADORNEGA (Antônio de Oliveira de. História Geral das Guerras Angolanas – 1680 – Tomo I; Lisboa, Agência-Geral do Ultramar, Lisboa, 1972. Reprodução fac-similada da edição de 1940), em diversas passagens de seu livro, menciona transporte em redes na África Ocidental (Congo e Angola), tanto a pé quanto a cavalo (neste último caso, p. 30, Tomo I). Resta saber se havia rede lá, ou foi importada do Brasil, como a farinha de mandioca, lá farinha de guerra.

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    1. Olá, João M. Brandão N., obrigada pela colaboração. Redes são encontradas em diversas culturas, não sendo, portanto, exclusivas de povos indígenas do Brasil. Quanto à farinha de mandioca, indígenas do Brasil já a conheciam sob duas formas: a farinha fresca, mais macia, e a farinha de guerra, que, sendo seca, era favorável à conservação em viagens e, exatamente por isso, incluída na matalotagem de navegadores, bandeirantes, tropeiros e quem mais precisasse viajar. Há um post sobre isto neste blog (A ordem era plantar mandioca, 25 de janeiro de 2016 https://martaiansen.blogspot.com/2016/01/farinha-de-mandioca-na-alimentacao-colonial.html).

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