quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Agricultura coletiva nas reduções indígenas comandadas por jesuítas na América do Sul

Existe uma ideia um tanto difundida de que missionários jesuítas, durante os tempos coloniais, teriam tentado estabelecer um Estado próprio no coração da América do Sul, formado por comunidades indígenas em uma espécie de regime comunista. 
Será, mesmo? O assunto é polêmico.
Se dermos crédito ao cônego João Pedro Gay, que viveu em São Borja no século XIX e investigou o assunto, a história pode ser outra. Lembremo-nos, antes de prosseguir, que a catequese, de fato, reunia indígenas em reduções, ou seja, comunidades de indígenas dirigidas por padres. Para os catecúmenos, tudo era novo: atrás ficava seu modo tradicional de sobrevivência, dando lugar ao estilo de vida que os jesuítas ensinavam, com novos hábitos alimentares e uso de vestuário. Até mesmo a disposição das casas em ruas perfeitamente retilíneas e o calendário centrado nas celebrações religiosas significavam uma mudança radical em relação ao modo como, até então, haviam vivido. 
Para viabilizar as reduções, era preciso assegurar um suprimento de alimentos, mediante agricultura e pecuária, praticadas com técnicas que os indígenas desconheciam e que deviam aprender, vivendo agora não mais em grandes casas comunitárias, mas em habitações menores, com familiares mais próximos e, eventualmente, outras pessoas. Pois, bem, de acordo com o já referido cônego João Pedro Gay, a primeira tentativa dos padres para a instrução dos indígenas na agricultura não se deu através de lavouras comunitárias, e sim mediante agricultura familiar: "[...] todos os anos se dava a cada família um terreno suficiente para seu sustento e sementes para plantar [...]. Se o padre que deles cuidava não os obrigasse a entregar-lhe no tempo das colheitas as sementes necessárias de todos os frutos para uma nova plantação, ter-se-iam perdido as sementes em todo o povo." (¹)
Portanto, habituados à coleta, caça, pesca e, em alguns casos, a uma agricultura rudimentar, os indígenas reunidos em reduções tinham certa dificuldade em lidar com a ideia de que era preciso guardar uma parte da produção para plantio no devido tempo, tão contrária a tudo que haviam aprendido no modo tradicional de sobrevivência que anteriormente conheciam. Valia o mesmo quando se tratava de pecuária. Segundo o cônego João Pedro Gay, houve casos em que até bois de arado foram comidos e, quando interrogados quanto a seu paradeiro, os catecúmenos alegaram que, por estarem com fome, haviam abatido os animais.
Teria sido apenas diante desse cenário que os missionários jesuítas resolveram adotar o cultivo coletivo da terra, e, ao menos nesse momento, não por convicções que poderiam ser chamadas de ideologicamente comunistas. Ainda segundo o cônego João Pedro Gay, "[...] não podendo conseguir proveito nenhum do trabalho particular dos índios, os jesuítas deixaram de os fazer trabalhar em lavouras privadas e ocuparam toda a gente do povo nas grandes lavouras e estabelecimentos da comunidade." (²) 

(1) GAY, João Pedro. História da República Jesuítica do Paraguay. Rio de Janeiro: Typ. de Domingos Luiz dos Santos, 1863, p. 186.
(2) Ibid., p. 187.


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2 comentários:

  1. Boa tarde Marta. Parabéns pelo seu trabalho e pesquisa, com muita informação.

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