quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Comércio entre reduções indígenas na América do Sul

Mesmo quem não simpatiza com a catequese de indígenas por jesuítas na América do Sul durante os tempos coloniais irá conceder que os missionários tinham, em alto grau, a virtude da perseverança. E precisaram dela, mesmo, em seus esforços para convencer grupos indígenas ao abandono de seu modo de vida tradicional por outro, em tudo diferente daquilo que até então praticavam. Não foram poucos os padres que acabaram perdendo a vida. Mas isso não é tudo.
As reduções, que foram sendo estabelecidas principalmente em terras que hoje pertencem ao Paraguai, à Argentina e ao Brasil, logo se tornaram o alvo favorito de bandeiras de apresamento que capturavam indígenas para escravização. Isso aconteceu, entre outras razões, porque os moradores das reduções eram instruídos em ofícios mecânicos pelos padres e, portanto, quando capturados, eram vendidos por preço mais elevado. A caça aos indígenas chegou a ser tão severa que, em alguns casos, os missionários se viram na contingência de, liderando seus catecúmenos, empreender viagem penosa e com muitas perdas, para ir viver em lugares mais distantes, supostamente fora do alcance dos escravizadores. Aí as reduções recomeçavam, mas a sede por indígenas para trabalho compulsório não era exclusividade de bandeirantes paulistas. Também colonizadores de origem espanhola, sempre que podiam, tentavam fazer uso da mão de obra que os jesuítas insistiam em defender e catequizar.
A despeito de tantos contratempos, as missões - ou reduções, se preferirem, leitores - prosperaram. É curioso que padres, cuja formação religiosa não contemplava, geralmente, a agricultura, a criação de gado e os ofícios manuais (¹), tenham sido capazes de liderar o estabelecimento de povoações, o ensino de técnicas de cultivo e até a edificação de construções bastante sólidas, se levarmos em conta as condições que deviam enfrentar. Como uma redução nem sempre era capaz de produzir tudo o que precisava, a troca do excedente com outras reduções foi, segundo o cônego João Pedro Gay (²), uma prática comum entre elas:
"Nem todas as reduções recolhiam os mesmos frutos [...] ou por causa da adversidade das terras, ou porque os administradores se inclinavam mais para qualquer ramo de produção. Assim umas reduções abundavam em trigo, carneiros, vacas, cavalos, mulas, etc., e outras sobressaíam em colheitas de algodão, anil, cana-de-açúcar, mel de pau, cera, etc. Eles permutavam entre si os produtos (nos povos não existia o uso de vender por dinheiro) cedendo um povo as sobras de um artigo a outro povo que dele necessitava, e recebendo valor em qualquer outro produto de que carecia. [...]." (³)
Não poderia haver, mesmo, dinheiro nas trocas, porque sabe-se muito bem da escassez de moeda na América do Sul colonial, tanto em terras da Espanha quanto de Portugal. Mas, seguindo adiante com a questão do comércio nas reduções, verifica-se que o correr dos anos fez com que a aplicação ao trabalho e a já mencionada perseverança dos religiosos da Companhia de Jesus conduzissem a um grau de desenvolvimento econômico bastante razoável. À medida que avançavam os anos do Século XVIII, as trocas não mais restritas às reduções demonstram que a produção crescera tanto, a ponto de permitir a venda do excedente para um mercado mais amplo, o dos colonizadores em geral. Voltemos às palavras de João Pedro Gay:
"[...] O que sobrava do trabalho comum era levado por embarcações pertencentes aos jesuítas pelos rios aos mercados espanhóis no Rio da Prata, ou no Brasil, e o seu produto era empregado em pagar o tributo real e na compra de artigos europeus que se não podiam fabricar nas reduções. [...]." (⁴)
Já havia, então, quem questionasse o poderio jesuíta na América do Sul. Sugeria-se, até, que se planejava o estabelecimento de uma República, escapando ao controle dos monarcas ibéricos. Os conflitos de interesses que levaram à extinção da Companhia de Jesus na Europa e as querelas por fronteiras em terras sul-americanas, decorrentes da assinatura de tratados entre Portugal e Espanha, golpearam mortalmente as reduções e deram origem a um amontoado de lendas sobre o "tesouro jesuíta" que, se é que existiu, jamais foi encontrado. Até hoje há quem o procure.  

(1) Ainda que, entre eles, houvesse exceções.
(2) Autor do Século XIX, foi cônego em São Borja - RS.
(3) GAY, João Pedro. História da República Jesuítica do Paraguay. Rio de Janeiro: Typ. de Domingos Luiz dos Santos, 1863, p. 187.
(4) Ibid., p. 225.


Veja também:

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Democraticamente, comentários e debates construtivos serão bem-recebidos. Participe!
Devido à natureza dos assuntos tratados neste blog, todos os comentários passarão, necessariamente, por moderação, antes que sejam publicados. Comentários de caráter preconceituoso, racista, sexista, etc. não serão aceitos. Entretanto, a discussão inteligente de ideias será sempre estimulada.