Era o ano de 1918 - que, como todo mundo sabe, marcou o fim da "Grande Guerra", como então se dizia, e que nós usualmente chamamos de Primeira Guerra Mundial. Era o ano de 1918, era dezembro, chegava o Natal. Crianças dos mais diferentes lugares deviam andar à espera de seus presentes. E eis que uma revista da época descobriu que São Nicolau havia sido enganado pela gente da Terra, acabando por preparar os presentes errados. Deixo falar a própria revista:
S. Nicolau, conforme apareceu em A Cigarra de 24/12/1918 |
"S. Nicolau, que é um bom velho pachorrento, selecionou cuidadosamente a sua quinquilharia, reservando para a distribuição à pirralhada da Terra apenas aqueles que melhor lhe soubessem ao paladar militarizado. Proveu-se de minúsculos artefatos bélicos [...]: - canhões e soldadinhos de lata, aeroplanos, naves de guerra, submarinos, telégrafos sem fio, trincheiras, retiradinhas estratégicas, quarteizinhos-generais, obuseiros, gases asfixiantes, comunicadinhos oficiais, imperadores, presidentes de república e de conselhos, ases de aviação e toda a longa lista de condimentos com que se prepara uma guerra moderna, reduzidos à proporção de brinquedos infantis..." (*)
Você, leitor, percebe com facilidade todo o clima da guerra retratado nesse parágrafo. Mas acontece que a 11 de novembro de 1918 a Guerra formalmente acabou. Com isso, os interesses dos meninos também mudaram - ao menos é o que diz o articulista:
"E, afinal, agora, nas vésperas da sua chegada, com esse escolhido carregamento, eis que a humanidade se transforma inesperadamente, cuidando apenas de se preparar para uma paz duradoura!... S. Nicolau não encontrará já dois petizes a quem tentem os bonecos guerreiros que ele lhes traz. O gênero passou da moda. Ninguém mais os estima. Para obter algum sucesso nesta sua próxima viagem, o santo teria de alijar toda a sua carga arrierée e procurar um stock de outros brinquedos, pelos menos maximalista ou bolchevistamente feitos... Qual! desta vez, os homens enganaram a S. Nicolau!"
Não, o enganado foi o articulista. Não sei se a criançada de 1918 mudou suas preferências, mas posso assegurar, sem receio de erro, que a humanidade em geral continuou a mesma. Não houve nenhuma paz duradoura (os anos que se seguiram são, não por acaso, chamados de "período entre-guerras"), e a conflagração seguinte, a Segunda Guerra Mundial, foi desmesuradamente pior que a precedente. Os brinquedos bélicos, reais ou virtuais, continuam a ser muito atraentes e estão por toda parte.
Estamos em dezembro de 2010. Que terá S. Nicolau reservado para as crianças este ano? Pelo andar da carruagem, as preferências parecem ser por vazamentozinhos de informações confidenciais, ameaçazinhas de guerra, debatezinhos eleitorais, construçõezinhas de armas nucleares, corrupçõezinhas, discursozinhos, renunciazinhas, apedrejamentozinhos, conferenciazinhas de cúpula... Estão fora de moda as honestidadezinhas, decenciazinhas, responsabilidadezinhas, e vai por aí. Você tem mais alguma ideia? Deixe uma dica para S. Nicolau!
(*) A CIGARRA, 24 de dezembro de 1918.
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