Por estranho que possa parecer, as crises e, dentre elas, as crises políticas e/ou econômicas em particular, parecem ter o dom (!) de aquecer o senso de humor. Talvez seja apenas um modo de tornar a vida um pouco menos insuportável. Ou, rindo do caos, acabar topando com alguma solução para ele.
Todos sabemos que, no Brasil, como em muitos outros países do Ocidente, os anos vinte foram tempos difíceis. Tratava-se, nesse caso específico, de dar forma, unidade e coesão a um país que tinha falta em grau extremo de tudo isso. A escravidão acabara em fins do século XIX, mas as disparidades raciais e econômicas dela decorrentes eram absurdas. Além disso, a chegada de multidões de imigrantes, poucos dos quais conheciam a língua, leis e costumes do Brasil, contribuiu para gerar ainda maior desigualdade entre a população, ainda que a imigração em si tenha sido, ao fim e ao cabo, um grande bem. Mas isso era só uma face do problema.
Na área econômica, a dependência das exportações de café havia levado o Brasil a um contínuo "balança-mas-não-cai", que acabou caindo. Só que, enquanto balançava, produziu revoltas, greves e agitações de toda ordem. Governar um país nessas condições... Foi coisa para presidentes como Epitácio Pessoa e Artur Bernardes, os alvos do humor natalino desta postagem.
Ironicamente, o desenhista deseja "Boas Festas", com "O lindo presente que, por culpa do Epitácio, o funcionalismo federal vai receber para carregar durante todo o ano!" (¹) Claro está que a referência é às medidas de austeridade econômica (que afetavam a população) adotadas no governo do presidente Epitácio Pessoa, apresentando um contraste gritante com as elevadas despesas feitas para a comemoração do centenário da independência. No cartum, o funcionário público recebe, como presente de Natal, um pesado fardo a carregar por todo o ano seguinte - portanto, o congelamento de soldos e salários era visto como um legado indesejável do presidente que deixara o cargo em 15 de novembro de 1922.
Acontece que o novo governo (o do presidente Artur Bernardes) foi também de muitas dificuldades, não apenas no plano econômico, mas também no político. Isso porque, se o marco inicial do Tenentismo é a chamada Revolta do Forte de Copacabana, ocorrida ainda no governo de Epitácio Pessoa, os desdobramentos da luta da jovem oficialidade das Forças Armadas só seriam plenamente conhecidos no mandato seguinte. Portanto, o pobre caboclo brasileiro, ansioso por melhoras na qualidade de vida, deixa seu sapato à espera de Papai Noel, mas tem uma surpresa bem desagradável. O cartunista assim interpretou a questão:
A legenda é explícita: "Natal! - O sapato do pobre..." (²) Sim, no sapato do pobre está a CRISE, exibindo os dentes com sarcasmo. Pode-se dizer, sem risco de erro, que no Brasil, ao menos para a parcela da população de menor renda, a Crise de 1929 chegou antes de 1929. Pode-se também afirmar que a Era do Café talvez tenha deixado, romanticamente, saudades em alguns. Economicamente, foi embora muito tarde.
(1) A CIGARRA, 15 de dezembro de 1922.
(2) A CIGARRA, 15 de dezembro de 1923.
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