"Foi o caso que uma carroça estava parada, ao pé da Travessa de S. Francisco, sem deixar passar um carro, e o carroceiro dava muita pancada no burro da carroça. Vulgar embora, este espetáculo fez parar o nosso Aires, não menos condoído do asno que do homem. A força despendida por este era grande, porque o asno ruminava se devia ou não sair do lugar; mas, não obstante esta superioridade, apanhava que era o diabo. Já havia algumas pessoas paradas, mirando. Cinco ou seis minutos durou esta situação; finalmente o burro preferiu a marcha à pancada, tirou a carroça do lugar e foi andando.Nos olhos redondos do animal viu Aires uma expressão profunda de ironia e paciência. Pareceu-lhe o gesto largo de espírito invencível. Depois leu neles este monólogo; "Anda, patrão, atulha a carroça de carga para ganhar o capim de que me alimentas. Vives de pé no chão para comprar as minhas ferraduras. Nem por isso me impedirás que te chame um nome feio, mas eu não te chamo nada; ficas sendo sempre o meu querido patrão. Enquanto te esfalfas em ganhar a vida, eu vou pensando que o teu domínio não vale muito, uma vez que me não tiras a liberdade de teimar..."Machado de Assis, Esaú e Jacó
A citação acima, leitor, não tem por objetivo defender o espancamento de animais. Essa brutalidade está, é claro, fora de questão. A ideia aqui é introduzir com isso algumas reflexões.
Por séculos a humanidade tem chamado certos bichos de "animais de carga", como se esses seres vivos tivessem vindo à existência pura e simplesmente para, até literalmente, carregar a humanidade nas costas. Seja como for, ao longo da maior parte da História, têm efetivamente acompanhado os humanos, quer nômades, quer sedentários. Nesse sentido, a nossa história é a deles também.
Quando nômades, os homens têm tido a seu serviço animais capazes de transportar maior carga do que as poucas forças humanas permitem, sem falar que só assim as antigas rotas comerciais terrestres foram possíveis. A agricultura, marca registrada da sedentarização, tornou-se viável para populações em crescimento graças ao trabalho de animais. E, se pensamos que tudo isso é coisa do passado, basta olhar para regiões menos desenvolvidas do planeta para constatarmos o quanto os homens ainda dependem dos animais em sua luta diária pela sobrevivência. É verdade que o Continente Americano viu o desenvolvimento de notáveis civilizações mesmo sem a existência de grandes animais "de carga", mas isso é uma exceção que de modo algum invalida a regra.
Carro de bois, de acordo com Debret (*) |
Asnos (Equus asinus), cavalos (Equus caballus), camelos (Camelus dromedarius ou Camelus bactrianus), elefantes asiáticos (Elephas maximus) e bois (Bos taurus) merecem pois, respeito e consideração, sem falar em búfalos, lhamas e outros. Em particular, no caso do Brasil, tiveram os bovinos notável significado, tracionando os famosos "carros de bois", através dos quais, por séculos, muito da produção agrícola do país foi escoada, até que a expansão das ferrovias viesse tornar obsoleto o antigo meio de transporte. No interior, no entanto, vez por outra se pode ainda ouvir o rangido estridente dos carros de bois, ainda que cada vez mais raramente. E, se já não são usados habitualmente, conservam-se no entanto no imaginário popular como ícone de uma vida rural idealizada.
Pequeno carro de bois entalhado em madeira. De um presépio (!) bem brasileiro, na cidade de Paraibuna, SP. |
Quanto ao uso de animais para alimentação, é assunto do qual me recuso a tratar. Embora respeitando o ponto de vista dos humanos carnívoros, estou plenamente convencida da superioridade ética do vegetarianismo. Mas isso já é outro assunto...
(*) DEBRET, J.B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 2. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
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