quinta-feira, 21 de abril de 2011

Ainda sobre a Semana Santa de 1822 em São Paulo: o que vestiam as mulheres nas igrejas

Na postagem anterior tratei de como Auguste de Saint-Hilaire, naturalista francês de passagem por São Paulo na Páscoa de 1822, ficou estarrecido com a falta de devoção do povo em geral ao assistir aos ofícios da Semana Santa. Veremos ainda outras de suas observações e, admitindo que correspondam à realidade, só podemos concluir que, para a gente paulistana da época, a Semana Santa era uma alegre oportunidade para festejar, sem a conotação de luto que, pela natureza dos rituais, deveria haver. A título de exemplo, podemos considerar o que diz Saint-Hilaire sobre a noite de quinta-feira, quando a liturgia relembrava o julgamento de Jesus:
"Na noite de quinta-feira santa o altar-mor de todas as igrejas estava extremamente ornamentado e a banqueta acima do anfiteatro prodigiosamente carregada de círios. Admirei sobretudo a brilhante iluminação da igreja do Carmo. As ruas se achavam cheias de povo, que passeava, de igreja em igreja, mas unicamente para vê-las, sem a menor aparência de devoção. Vendedoras de confeitos e doces sentavam-se no chão, à porta das igrejas, e as pessoas compravam guloseimas para as oferecer às mulheres com quem passeavam." (¹)
Veja, leitor, que a data servia para passeio e galanteria, com quase nenhum significado religioso. Já tratamos, na última postagem, das causas desse "fenômeno" e, por isso, vamos em frente.
Chega a sexta-feira santa e nosso viajante francês resolve percorrer as igrejas, contrastando o que vê com os costumes de sua terra natal. Conclui que, de todas elas, somente na Catedral o aspecto correspondia ao que se esperava para a comemoração da morte e sepultamento de Jesus:
"A Catedral vinha a ser a única que tinha aspecto lutuoso. Mas se achava iluminada e longo velório preto escondia o nicho do altar-mor. Em frente a esta cortina havia uma cruz, muito grande, da mesma cor do reposteiro e que dele mal se destacava, e um sudário branco enrolado nos braços da cruz parecia, até certo ponto, flutuar no ar. Ao rosto de Cristo deitado no altar, recobria um pano grosso, e só aparecia uma das mãos da imagem que, ligeiramente espalmada, saía fora do esquife. Os fiéis iam todos beijá-la e depositavam esmolas numa bacia." (²)
Não estaria tudo perfeito, segundo os padrões religiosos do século XIX? Nem tanto. Nosso autor prossegue, assinalando não sem desgosto: "O que prejudicava um pouco o efeito deste conjunto era a presença de jovem sacristão, de jaleco  e sem gravata, sentado displicentemente perto da bacia, numa atitude de perfeito tédio e indiferença, de pernas cruzadas e com o peito quase inteiramente descoberto." (³)
É aí que, em sua descrição, Saint-Hilaire deixa um relato muito importante, sobre os hábitos de vestuário das mulheres que iam às igrejas naquele ano de 1822, o mesmo da independência do Brasil, o que talvez signifique que o costume de vestir-se de preto, cobrindo-se quase completamente, já foi, em termos de prática religiosa, mais amplo do que se poderia supor, pelo menos onde predominavam as tradições ibéricas:
"Em São Paulo as negras e mulatas e em geral as mulheres do povo aparecem nas igrejas com a cabeça e o corpo envoltos em pano preto. As mulheres de classe mais elevada põem à cabeça e ombros uma mantilha de casimira preta com que escondem quase inteiramente o rosto, mantilha esta debruada de larga renda da mesma cor." (⁴) A propósito, a ilustração de Debret, que aparece na postagem anterior, registra adequadamente esse costume. (⁵)

(1) SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 104.
(2) Ibid., p. 105.
(3) Ibid.
(4) Ibid.
(5) A ilustração de Debret é aproximadamente contemporânea, ainda que não do mesmo local, o que permite supor que tais hábitos de vestuário eram mais ou menos generalizados Brasil afora.


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