quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Quando um escravo que alguém havia comprado podia ser devolvido?

Escravo - desenho de M. Rugendas (²)

Era possível devolver um escravo que alguém houvesse comprado? As Ordenações do Reino diziam que sim, conforme o Livro 4º, Título XVII:
"Qualquer pessoa que comprar algum escravo doente de tal enfermidade que lhe tolha servir-se dele, o poderá enjeitar a quem lho vendeu, provando que já era doente em seu poder da tal enfermidade, contanto que cite ao vendedor dentro de seis meses do dia que o escravo lhe for entregue." (¹)
Parece tudo muito claro e simples, mas, como é comum no mundo dos negócios, podia haver divergências de interpretação, de modo que a lei prosseguia, tratando de alguns casos particulares. O § 1 do mesmo Livro e Título estipulava que a devolução não seria admitida se, no ato da venda, o comprador estivesse ciente da doença do escravo ou se, não o sabendo, a doença não incapacitasse para o trabalho.
Vícios não seriam motivo para devolução (conforme o § 2), a menos que o vendedor afirmasse que o escravo não tinha vícios; entretanto, se o escravo fosse conhecido por ter fugido anteriormente e o comprador não fosse disso informado, então poderia o novo dono pleitear a devolução.
No § 3 determinava-se que a devolução era legítima em caso de escravo condenado à morte ou que já houvesse tentado suicídio "com aborrecimento da vida" [sic!!!]. Pelo § 4 definia-se que podia ser devolvido o escravo comprado com a alegação de que tinha um ofício ("como pintar, esgrimir ou que é cozinheiro"), mas que, em posse do novo senhor, se mostrasse incapaz no dito ofício. Porém havia a ressalva de que a venda seria válida se o escravo tivesse algum conhecimento do ofício, não necessitando ser completamente hábil.
Todos esses regulamentos estavam em vigor para escravos que já se encontrassem cativos em território do Reino. Para os recém-vindos da África, o prazo para devolução era diferente, conforme estipulava o § 7:
"Se o escravo que o comprador quiser enjeitar for de Guiné, que ele houvesse comprado a pessoa que de lá o trouxesse, ou ao tratador do dito trato, ou ao mercador, que compra os tais escravos para revender, não poderá ser enjeitado senão dentro de um mês, que lhe correrá do dia que lhe for entregue [...]."
Se alguém de meus leitores já estiver cansado com tantas minúcias, recomendo um tantinho de paciência. Agora vem o mais "exótico" da legislação, uma mostra perfeita da condição do cativo diante da Justiça e da sociedade na qual, totalmente contra a vontade, era obrigado não só a viver como a trabalhar:
§ 8 - "E o que dito é nos escravos de Guiné, haverá lugar nas compras e vendas de todas as bestas, que por quaisquer pessoas forem compradas, que se quiserem enjeitar por manqueira ou doença. E ainda que os escravos se não podem enjeitar por qualquer vício e falta de ânimo [...], as bestas se podem enjeitar pelos tais vícios ou faltas de ânimo, assim como se sem causa e não lhes sendo feito mal algum, se espantarem, ou empinarem, ou rebelarem."
Não, não acabou, senhores leitores. A tal comparação ia das coisas animadas para as inanimadas, conforme o § 10:
"E as coisas que não são animadas, quer sejam móveis, quer de raiz, se poderão enjeitar por vícios ou faltas que tenham, assim como um livro comprado no qual falta um caderno ou folha em parte notável, ou que está de maneira que se não possa ler, ou um pomar ou horta que naturalmente, sem indústria dos homens, produz plantas ou ervas peçonhentas."

(1) Ordenações do Reino, conforme edição de 1824 da Universidade de Coimbra. Foram compiladas e publicadas pela primeira vez no início do Século XVII e, portanto, estiveram plenamente em vigor no Brasil durante todo o Período Colonial. Mesmo após a Independência (1822), não era raro que juristas se reportassem a elas.
(2) O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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