sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Faltou vinho para celebrar missa

Ao que parece, os primeiros anos de colonização na Capitania de São Vicente foram marcados por alguma esperança, até entusiasmo, mesmo. O donatário, Martim Afonso de Sousa, havia, por ordem do rei, seguido para as Índias, mas seu representante cuidava dos interesses dos colonos. Logo, porém, a enorme distância de Portugal viria a trazer problemas sérios. A economia estaria restrita à subsistência dos moradores, já que a exportação era difícil - apenas um navio, por ano, fazia a rota de São Vicente para o Reino, conforme mencionaram vários autores, dentre os quais José de Anchieta, em carta datada de 1555: "...é necessário que tenhamos paciência, pois de ano em ano apenas parte um navio." (¹)
A dificuldade de comunicação, sendo já grande com esse único navio fazendo anualmente a rota, iria ficar ainda maior. Em 1559, ainda segundo o mesmo Anchieta, nem uma única embarcação foi ao Reino, conforme carta escrita ao Geral dos Jesuítas em 1º de junho de 1560: "...nunca achamos ocasião de poder escrever, visto neste último tempo não partir daqui navio algum, porque mais é para se compadecer de nós outros, que para se irar, que tanto tempo carecemos das cartas de nossos irmãos..." (²)
Para os jesuítas, além da dificuldade em manter correspondência com membros da Ordem, a falta de uma embarcação que fosse ao Reino e de lá viesse carregada de mercadorias trazia um problema adicional: chegou a faltar vinho para a celebração da missa, conforme assegurou Anchieta na mesma carta: "...vimos a tanta falta, que até para dizer missa nos faltou vinho por alguns dias." (³)
Em sua condição de missionários, os padres jesuítas estavam já bem acostumados à sobrevivência apenas com os recursos disponíveis na Colônia, e de pouca coisa do Reino é que deviam sentir falta; um pouco de imaginação, porém, irá conduzir-nos às privações pelas quais passavam os colonos em geral. Roupas, ferramentas, sementes, alguns alimentos que não se encontravam disponíveis na América - a lista de coisas que podem ter faltado devia ser extensa.
Tudo isso, junto à natureza difícil de dominar, contribuiu para fazer dos colonos de São Vicente os mais audazes e independentes de quantos vieram à América do Sul. Não por acaso é que dentre eles saíam bandos de rudes aventureiros - mais tarde chamados nobremente "bandeirantes" - que enfrentavam o interior ainda desconhecido do Brasil em busca de índios, aos quais escravizavam, e de qualquer coisa que pudesse melhorar as condições de existência. Ouro, por exemplo.

(1) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 85.
(2) Ibid., p. 144.
(3) Ibid.


Veja também:

4 comentários:

  1. Marta, que delícia de postagem, uma verdadeira viagem.
    Acabei de organizar e entregar um livro que fala exatamente
    perto desse assunto das capitanias (http://reflexosespelhandoespalhandoamigos.blogspot.com.br/p/escritor-rubens-vieira-de.html).


    Delicioso domingo ai.
    Bjins
    CatiahoAlc.
    http://reflexodalmafase2014.blogspot.com.br/

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  2. Como será que resolveram o assunto? Não comungaram nessas missas? Ou teriam trocado o vinho por outra coisa? Apesar do isolamento, devia ser uma aventura e tanto partir para um Mundo Novo, em tudo diferente do que conhecemos.
    Beijinhos, Marta, aproveito para desejar um bom ano, cheio de alegrias e saúde
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    Respostas
    1. Anchieta não diz na carta o que foi que fizeram, mas posso conjecturar que, talvez, tenham deixado de oficiar missa por alguns dias. Há também a possibilidade de que tenham conseguido vinho com moradores que tivessem alguma reserva.
      Consta que Martim Afonso de Sousa, o fundador e primeiro donatário da Capitania de São Vicente trouxe algumas mudas de videira para plantar. Assim, é possível que, com o tempo, a produção local tenha sido suficiente, ao menos para as coisas indispensáveis. No Século XVIII, de acordo com Pedro Taques de A. Paes Leme, havia vários agricultores na região que tinham ótimas safras de uva e que faziam bons vinhos. Já não dependiam de importação, portanto.

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