O vestuário doméstico usado por quem vivia no interior do Brasil na primeira metade do Século XIX
Quem andasse pelo interior do Brasil por volta da primeira metade do Século XIX esperando encontrar compostura, ainda que não formalidade, na recepção de visitas, provavelmente ficaria desapontado. É que o distanciamento dos centros urbanos, o pouco ou nenhum convívio social, faziam com que até mesmo os mais abastados não tivessem escrúpulos em aparecer diante das visitas em trajes sumários. Enviado à Província de Goiás pouco depois da Independência para organizar as forças militares da região, Raimundo José da Cunha Matos observou, quanto à gente que o hospedava ao longo do caminho (que, aliás, era longo mesmo, ainda mais naqueles tempos em que o meio terrestre de transporte mais rápido eram os cavalos): "A falta de educação urbana da gente do sertão induz a apresentarem-se os homens muitas vezes em presença de pessoas de respeito em trajes do interior das casas, em camisa e ceroulas; mas as mulheres pela maior parte aparecem vestidas com decência, posto que estejam quase sempre sem meias, e com tamancos nos pés." (¹)
Mais tarde, já na Cidade de Goiás, capital da Província, Cunha Matos observou que as mulheres viviam quase reclusas, a não ser pelas idas à missa, e isso com um traje que, se não era a mantilha dos tempos coloniais, não deixava, para efeitos práticos, de ter a mesma finalidade: "As senhoras não saem fora de casa durante o dia senão em raríssimas ocasiões, mas nos dias santos e domingos vão à missa de madrugada, e então cobrem a cabeça com um lenço que forma uma espécie de elmo com babeira mas sem viseira, e por este modo só se lhes podem ver os olhos [...]." (²)
Uma viagem de inspeção de tropas deu ao mesmo autor a oportunidade de constatar que os hábitos quanto ao vestuário que havia presenciado não estavam restritos a uma pequena área, tampouco eram praticados somente por camadas mais baixas da população. Cunha Matos, que, ao lado de suas atribuições militares, aproveitava a ocasião para ir escrevendo as observações que hoje nos divertem, deixou-nos este registro em que, a despeito do transparente mau humor, descreve com precisão quase fotográfica o trajar diário de um indivíduo que, tendo-o hospedado, estava longe de pertencer à fração empobrecida da Província: "[...] O proprietário do engenho hospedou-me com a melhor vontade, e com tanta sem-cerimônia que sempre esteve em camisa e ceroulas, tamancos, e sem meias nas pernas. Tal é o estado de civilização destes sertões, ou a grosseria de alguns homens, ainda mesmo proprietários abastados." (³)
(1) MATOS, Raimundo José da Cunha. Itinerário do Rio de Janeiro ao Pará e Maranhão Pelas Províncias de Minas Gerais e Goiás. Rio de Janeiro: Typ. Imperial e Constitucional, 1836, p. 96.
(2) Ibid., pp. 138 e 139.
(3) Ibid. p. 188.
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