A carta escrita ao rei de Portugal, D. Manuel, por Pero Vaz de Caminha é, ao que se sabe, o mais antigo documento existente com um relato dos primeiros contatos entre navegadores portugueses e indígenas brasileiros. Esse interessantíssimo texto, que nenhum estudante brasileiro deveria deixar de ler na íntegra ao menos uma vez, traz, como é óbvio, o ponto de vista dos recém-chegados europeus, mostrando o misto de medo e curiosidade que esse primeiro encontro provocou de parte a parte.
Hoje, entretanto, quando o lemos, é fácil perceber o quanto Caminha estava equivocado em algumas de suas anotações, o que era fruto não apenas de ideias pré-concebidas como também de conclusões tiradas com pouquíssima informação, que não possibilitavam compreender coisas tais como a verdadeira extensão do território ao qual chegavam e a enorme diversidade cultural dos povos indígenas do Brasil. Os breves excertos seguintes, como veremos, oferecem um ótimo panorama disso.
"E isto me faz presumir que não têm casas e nem moradias em que se recolham, e o ar em que se criam os faz tais. Nós, pelo menos, não vimos até agora nenhumas casas, nem coisa que se pareça com elas."
Mais tarde, ainda na famosa Carta, Caminha trataria de corrigir essa informação, já que alguns dos portugueses, indo terra adentro, chegaram a uma aldeia, dela descrevendo as habitações existentes.
2. Pensa que os nativos não têm nenhum sistema de crenças (coisa que qualquer escolar sabe não ser de modo algum verdade):
"Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências."
3. Diz que os índios desconhecem tanto a agricultura quanto a domesticação de animais para a criação:
"Eles não lavram nem criam."
Mesmo sendo verdade que muitos grupos indígenas eram predominantemente nômades ou seminômades, havia, como visitantes posteriores constataram, um claro conhecimento do cultivo de vegetais para alimentação, dentre os quais destacava-se a mandioca (¹). Além disso, não era incomum a domesticação de animais como araras e papagaios (²).
4. Os portugueses, ao menos pelo que se depreende da Carta, parecem crer estarem em uma ilha, sobre cujas dimensões Caminha arrisca um palpite:
"Esta terra, senhor, parece-me que, da ponta que mais contra o sul vimos até à outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas de costa." (³)
Muito, muito pouco, senhor Caminha, para quem acabava de chegar ao Brasil!
5. Caminha opina sobre o clima das novas terras:
"Porém a terra, em si, é de muito bons ares, assim frios e temperados, como os de Entre-Doiro-e-Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá."
Para quem lê esta postagem, já fez uma cara de estranhamento, e deve andar pensando que o homem devia estar com febre, há que se ponderar uma questão importante: pelo início do século XIX (!!!) vários autores asseguravam que, em decorrência da supressão das matas nativas, o clima do Brasil estava passando por significativas mudanças, tornando-se mais quente. E, embora os limites desta postagem não permitam detalhar o assunto, ao menos por hora, há muitos relatos dos primeiros séculos da colonização que parecem secundar as informações relacionadas a um clima menos tépido em terras brasileiras. Portanto, é possível que Caminha não estivesse tão errado assim, sendo, entretanto, necessário ressalvar que, devido à enorme extensão territorial, o Brasil tem, por consequência, uma certa variedade climática.
A favor de Pero Vaz de Caminha há que se dizer, ainda, que tinha a idoneidade de quase sempre ressalvar que essas eram informações segundo parecia naquele momento, embora parte do que há em sua exposição possa hoje entrar no acervo dos grandes absurdos.
Ao datar a Carta, em sua conclusão, anotou:
"Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500." Ou seja, tendo iniciado com um breve relato da travessia do Atlântico, passando pelo avistamento de terra até o momento em que se retomou o rumo da África, Caminha foi escrevendo, escrevendo... e deixando, para o futuro, um primeiro retrato da "Ilha de Vera Cruz", ainda muito parcial e impreciso, mas de uma enorme valor como documento histórico. Nosso missivista um tanto tagarela não tornaria a ver o Brasil, nem mesmo retornaria a Portugal - é contado entre os que morreram durante a expedição comandada por Cabral que, depois das terras na América, seguiu para as "Índias", como se dizia na época.
(1) Veja a postagem "A alimentação dos indígenas do Brasil, segundo Hans Staden".
(2) Veja a postagem "Papagaios não eram maus com arroz".
(3) Nas antigas unidades portuguesas de medida a légua variava entre cerca de 5,6 km e pouco mais de 6,1 km.
Veja também:
Marta; parabéns, pelo teu blog, esta muito bem estruturado e rico em informações históricas que valorizam nossa história e as criações do homem.
ResponderExcluirObrigada pela visita, seja muito bem-vindo a "História & Outras Histórias". Entre em contato sempre que tiver sugestões de postagens ou quiser debater algum assunto apresentado neste blog.
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