terça-feira, 23 de agosto de 2011

Papagaios não eram maus com arroz

Conforme expliquei na postagem anterior, o Brasil foi, nos primeiros tempos da colonização, conhecido como "Terra dos Papagaios", isso porque araras, periquitos e, naturalmente, papagaios, encantavam os recém-chegados europeus por sua beleza e pela capacidade de repetir palavras.
Entretanto, logo os colonizadores descobriram um uso bem específico para essas aves - especialidade culinária - uso esse que veio a prolongar-se por séculos. Pode parecer horripilante, mas é isso mesmo (embora eu me pergunte por que detestamos essa ideia e quase todos aceitamos a matança de outros animais, dos quais se diz "criados para abate"). E, se o que estou dizendo chega a parecer demasiado absurdo para ser verdade, vou citar uma série de pequenos documentos históricos que põem fora de qualquer dúvida essa questão.
O Conde de Azambuja, Dom Antônio Rolim, obrigado por dever de ofício a "passar às minas" do Cuiabá em 1751, deixou, em seu cuidadoso relatório da monção da qual participou, a seguinte observação:
"De 11 de agosto por diante comecei a ter caça; e depois poucos foram os dias em que me faltou. Patos bravos, maiores e mais gostosos do que os do reino, e outra casta de pássaros a que chamam jacus, do tamanho de perdizes, e com alguma semelhança no gosto. Em certas paragens muita quantidade de papagaios, os quais não são maus com arroz." (¹)
Note, leitor, papagaios "não são maus com arroz"...
Outro que menciona o dito costume de devorar papagaios e outros psitacídeos é o Padre Ayres de Casal, em sua Corografia Brasílica, salientando, para cúmulo, que todos "têm boa carne":
"Há vinte e tantas castas de papagaios, a contar do mais pequeno periquito até a Arara: todas têm boa carne, com especialidade o juru; os que compõem a última classe são de três castas: ararunas, que são de todo azuis, Canindés, também azuis por cima com a barriga doirada e outras, que têm a parte inferior e a cabeça encarnada."
Finalmente, outro que participou de monção rumo ao interior do Brasil, dessa vez com propósitos científicos, foi o desenhista francês Hércules Florence que, como outros, também anotou em seu diário o mesmo costume de incluir papagaios na dieta dos monçoeiros:
"Mataram-se muitas jacutingas, espécie de galináceos, araras e papagaios, pássaros que figuraram na nossa mesa como caça deliciosa, principalmente a primeira. O que porém leva as lampas em sabor e delicadeza são os patos-d'água." (²)
Como deve ter observado o leitor atento, desta vez as pobres aves foram adjetivadas como "caça deliciosa".
Todavia, o mesmo Hércules Florence parece nos dar a chave para entender, ao menos em parte, como é que os colonizadores europeus chegaram à conclusão de que psitacídeos eram aves comestíveis. Descrevendo uma aldeia de índios apiacás, registrou:
"Havia ali cerca de oitenta araras que esses índios criavam por causa das belas penas e da carne: alcandoravam-se na cumeeira, na choupana e nas árvores vizinhas. Voavam para a floresta, mas voltavam e deixavam-se apanhar e levar para onde se quisesse." (³)
Apenas para advertência de quem tiver um apetite verdadeiramente pantagruélico, a maioria dos papagaios e seus parentes nativos do Brasil encontra-se hoje na lista de animais em risco de extinção e, por isso, não pode ser abatida. Ainda bem!

(1) TAUNAY, Affonso de E. História das Bandeiras Paulistas 3ª ed., vol. 3. São Paulo: Melhoramentos, 1975, p. 201.
(2) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 35.
(3) Ibid., p. 220.


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