quarta-feira, 7 de abril de 2010

Quem se importa com animais e escravos que fugiram?

Eu poderia ter levantado os dados em muitos outros jornais da época, mas escolhi este pela facilidade do acesso ao acervo digitalizado do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Trata-se da edição de terça-feira, 5 de fevereiro de 1867 do Correio Paulistano. Como na maioria dos jornais, há uma seção, nesse caso na página 4, dedicada a anúncios, e dois deles chamam a atenção - estão bem próximos, quase ao lado um do outro.
Vejamos o primeiro. Trata-se de um animal de carga que fugiu e que o dono deseja recuperar, oferecendo uma recompensa. Transcrevo o texto, na ortografia atual:
"BESTA FUGIDA
50$ DE GRATIFICAÇÃO
Fugiu de um pasto da freguesia do Brás uma besta grande e nova, ferrada dos quatro pés, de cor vermelha, tem sinais de pisadura sobre o lombo, e as orelhas muito grandes que costuma derrubar, dá pelo nome de Boneca, e é muito mansa.
Quem achar e levar à rua nova de S. José n. 1 será gratificado com a quantia acima."
Está aí uma leitura altamente edificante para quem acha que "as coisas são como sempre foram". Ajuda a refletir sobre o modo de vida em São Paulo no século XIX. Mas não é essa a razão pela qual transcrevo o texto. Vamos ao segundo anúncio que, como já disse, aparece na mesmíssima página de jornal, quase ao lado do primeiro:
"ESCRAVO FUGIDO
Gratifica-se generosamente a pessoa que apreender o escravo mulato de nome Belisário, pernambucano ou baiano, idade 20 anos, principiando a buçar, e poucos fios de barba, tem um sinal branco no tornozelo do pé esquerdo.
Este escravo fugiu de Itu a José Galvão de França Pacheco Junior no dia 25 de janeiro próximo passado, e foi encontrado no dia 29 na Varginha em direção para São Paulo, trazendo camisa de chita e calça de casimira, e cobertor francês branco. Poderá ser entregue em Itu ao dito José Galvão ou em São Paulo aos senhores Redondo e Coelho na Rua do Comércio n. 42, que se satisfará a gratificação."
Imagino que você, leitor, esteja estarrecido diante das semelhanças entre os dois anúncios, como nome do fujão, referências à idade, sinais particulares e o oferecimento de uma recompensa. No caso do escravo, era importante classificá-lo como baiano ou pernambucano, pois o tráfico de africanos, proibido "de mentirinha" em 1831, fora efetivamente banido em 1850. Fica evidente que, para muitos dos contemporâneos, animais de carga e humanos escravizados eram mais ou menos a mesma coisa, ou seja, máquinas de trabalhar, que constituíam propriedade de alguém e cuja fuga, portanto, representava prejuízo. Daí estipular-se uma recompensa, a fim de favorecer a captura e a devolução.
É fato notório que este não foi um caso isolado. Quem se der ao trabalho de pesquisar em outros jornais encontrará uma chuva torrencial de anúncios semelhantes, ensejando a óbvia constatação de que a prática de assemelhar escravos a bestas de carga de modo algum ofendia a opinião pública. Para dizer bem claramente, as pessoas estavam acostumadas a isso. Chegamos, portanto, à reflexão final: hoje, o tratamento desumano dispensado aos escravos nos parece uma aberração, mas não estaremos nós, em nossos dias, tolerando absurdos  tão grandes quanto e  aos quais nos acostumamos ao ponto de termos perdido a capacidade de reconhecê-los?


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