Nem as cobras escapavam de virar refeição, quando faltava aos bandeirantes comida melhor
Em suas empreitadas de apresamento de indígenas, bandeirantes paulistas levavam uma provisão de farinha de mandioca e de milho, feijão e alguns outros alimentos que se conservassem bem por algum tempo. Além disso, como não eram nem veganos e nem vegetarianos, comiam quanta caça lhes caísse nas unhas. Frutas silvestres, palmito e, em circunstâncias de extrema penúria, até raízes, eram mastigados para acalmar o estômago.
Aqueles dentre os sertanistas que tomavam o rumo das missões jesuíticas de Guairá, pretendendo capturar índios já catequizados e instruídos em um ofício, podiam contar, para alimentação, com fartura de pinhões, que encontravam pelo caminho. Disse Simão de Vasconcelos, jesuíta e escritor do Século XVII, em Vida do Padre João de Almeida, ao tratar das sementes da Araucaria angustifolia:
"[...] É comum mantimento dos bárbaros (¹) e de exércitos inteiros de índios e brancos, que hoje talam aquelas campanhas cada dia, a fazer guerra ao gentio, que habita junto ao Paraguai, terra dos castelhanos, e detendo-se os tais exércitos anos inteiros por estes sertões, bastam só os pinhões para sustento deles. É mantimento doce mais que castanha de Europa, e come-se da mesma maneira que esta, ou cru, ou assado ou cozido. [...]." (²)
Cabe explicar que "exércitos", neste caso, era o modo de Simão de Vasconcelos indicar bandos de homens armados que iam ao sertão, alguns por ordem de administradores coloniais, partindo do "lado espanhol", supostamente para "pacificar" indígenas, mas a maioria formada por gente que saía de São Paulo, e, em um e outro caso, para efeitos práticos, o objetivo era o mesmo: escravizar quantos ameríndios fossem capazes de capturar.
Tentem agora, leitores, usar a imaginação para pintar, mentalmente, a cena: bandeirantes e indígenas que os acompanham, já cansados de um longo dia de caminhada, procuram um lugar conveniente para passar a noite. Aí, depois de armadas as redes, fazem fogo e põem a cozinhar o feijão, que servirá, com a farinha, para a refeição da noite e para o dia seguinte. Alguns, tentando algo mais para o jantar, vão à caça. Coloquem na cena, agora, estas palavras, ainda de Simão de Vasconcelos, em referência às cobras que havia nos sertões:
"[...] se criam cobras tão monstruosas em grandeza, que se conta por certo que da carne de uma só delas, comeu um exército inteiro, e não parece grande o espanto aos que sabem a disforme grandeza daquelas [...] a que chamam jiboias vulgarmente." (³)
Bem, se fosse, não uma jiboia, mas uma sucuri... Ou se o tal exército não fosse muito numeroso... Simão de Vasconcelos talvez quisesse provocar espanto em seus leitores que viviam no Velho Mundo. Uma coisa é certa, porém: não parecia absurdo que sertanistas andassem pelo mato a devorar cobras, se não houvesse nada mais interessante para o jantar.
Jiboia vista em um córrego no interior do Estado de São Paulo |
(1) Por "bárbaros", Simão de Vasconcelos fazia referência aos indígenas da região.
(2) VASCONCELOS, Simão de S. J. Vida do Padre João de Almeida. Lisboa: Oficina Craesbeeckiana, 1658, p. 54.
(3) Ibid., p. 55.
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