domingo, 11 de março de 2012

A reclusão de mulheres no Brasil Colonial (Parte 2): Um caso extremo e uma exceção

"Guardava-a seu pai, e guardava-se ela; porque não há cadeados, guardas e fechaduras que melhor guardem a uma donzela do que o recato próprio."
                                                                                                    Miguel de Cervantes, Dom Quixote

Depois de considerações de caráter geral sobre a reclusão de mulheres que viviam no Brasil Colonial (veja a postagem anterior), trataremos agora de um caso específico, aberrante, é verdade, dos primeiros tempos após a Independência, que nos chegou por um relato de Hércules Florence. Esse artista tomou conhecimento do fato durante a Expedição Langsdorff (1825 - 1827), mas àquela altura, a pobre criatura de que fala já era falecida, como ele próprio diz, ao contar de um fazendeiro que o hospedou em Mato Grosso, Domingos José de Azevedo, português de nacionalidade:
"Falou-nos na mulher, e ao nos levantarmos da mesa, levou-nos para os seus aposentos, que eram dois quartinhos. No fundo suspendeu do soalho um alçapão e mostrou-nos uma salinha colocada no primeiro pavimento, escura, úmida e com uma única janela de grades que dava para o engenho de cana. "Aqui embaixo", disse-nos ele, "é que eu guardava a mulher, quando tinha de sair de casa. Ela descia por uma escadinha que eu recolhia e recebia alimentos pela janela do engenho."
Tal homem dispensa, nem merece qualquer reflexão. Supúnhamos que, como acontecia em todas as fazendas, pudéssemos ir ao engenho, mas vendo que ele se mostrava cioso de suas mulatas, conservamo-nos no alpendre e no terreiro que ficava diante da casa." (¹)
Ora, possivelmente alguns de meus leitores dirão: Esse sujeito era um sociopata! Sim, talvez, mas a questão é que, em sua época, agia assim, não fazia disso segredo algum e não consta que tenha sido punido ou mesmo advertido por seu procedimento. Nisso reside o problema, e também na enorme probabilidade de que esse não fosse um caso isolado - muitos outros devem ter ocorrido, dos quais não sabemos simplesmente porque ninguém escreveu sobre eles. A ação e/ou omissão do Estado e da religião encarregava(m)-se do restante. Há que se considerar, para além de tudo que, educadas para a submissão, muitas mulheres sequer conseguiam enxergar o quanto de monstruoso havia em tudo isso, e nosso artista-viajante-escritor que nos deixou essa memória talvez só o percebesse porque, como estrangeiro, tivesse sobre isso um olhar algo mais crítico que o dos nacionais, acostumados a essa realidade de quotidiana opressão (²). Pode-se dizer que, em maior ou menor grau, a violência contra mulheres era generalizada país afora, condição que não ia mudar tão depressa assim (e que, lamentavelmente, continua a existir, ainda que não na mesma escala, e a despeito de toda a legislação que prevê penas severas para os agressores).
Mas, ao que sabemos pelos relatos de Saint-Hilaire, o naturalista francês, havia pelo menos uma região no Brasil na qual as coisas eram um pouco diferentes. Ao andar pelo Rio Grande do Sul em 1820, observou:
"...as mulheres têm uma bela cor e nunca se escondem à aproximação de forasteiros." (³) E, em 12 de julho do mesmo ano, após ir, em Porto Alegre, a um pequeno baile ao qual haviam-no convidado, ainda acrescentou:
"Encontrei maneiras distintas em todas as pessoas da sociedade. As senhoras conversavam sem constrangimento com os homens; estes as cercavam de gentilezas, mas não demonstravam desvelo ou desejo de agradar, qualidade, aliás, quase exclusiva dos franceses. Desde que estou no Brasil ainda não tinha visto uma reunião semelhante. No interior, como já afirmei centenas de vezes, as mulheres se escondem; não passam de primeiras escravas da casa, e os homens não têm a mínima ideia dos prazeres que se podem usufruir com decência." (⁴)
O contraste entre o que vira em outras regiões do Brasil e o que agora presenciava deve ter-lhe causado forte impressão, uma vez que voltou ao assunto posteriormente, considerando, sobre as mulheres brasileiras:
"Uma infinidade delas não sabe ler nem escrever: aprendem algumas costuras, a recitar orações que elas próprias não entendem, e é tudo; por isso as brasileiras, em geral, ignoram os encantos da sociedade e prazeres da boa conversação. Entretanto, nesta região, em que as mulheres se ocultam menos do que as das capitanias do interior, têm elas, é preciso convir, melhores noções de vida; são bem desembaraçadas, conversam um pouco mais, porém ainda estão a uma infinita distância das mulheres europeias." (⁵)
Pois bem, já concluindo, podem ser feitas algumas observações:
a) Saint-Hilaire, ou qualquer outro que quisesse analisar as condições vigentes no Brasil da época precisaria ter em conta o fato de que esse era um país muito grande e, por isso mesmo, sem extrema homogeneidade no processo de colonização, o que resultava em uma grande variedade de arranjos sociais, embora alguns elementos (como o fenômeno da reclusão de mulheres) fossem predominantes na maioria das regiões;
b) As más condições de vida das mulheres não eram, em absoluto, exclusividade do Brasil: em muitos lugares da Europa, na época, elas tinham uma existência verdadeiramente lamentável;
c) É certo que uma educação mais esclarecida, tanto de homens como de mulheres, poderia fazer muito para elevar o padrão de vida da população, mas nesse tempo nem meninos e nem meninas recebiam muita instrução formal, sendo notável em São Paulo a existência, já no século XVII, de mulheres que, em documentos oficiais (como inventários, por exemplo), se declaravam capazes de ler e escrever, quando a maioria da população da Colônia era crassamente analfabeta;
d) Por último e muito importante, vale notar que muitos dos problemas que enfrentava o Brasil ao tornar-se independente, tais como defasagem na estrutura educacional, diferenças sociais acentuadas e desigualdade de oportunidades para homens e mulheres permanecem até hoje - muda-se, quase sempre, a fachada, mas parece difícil vencer a batalha contra as deficiências em seus alicerces.

(1) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 150.
(2) Um fenômeno parecido pode ser observado em relação à escravidão, tratada como "normal" dentro do Brasil, ainda que parecesse chocante para quem vinha de fora.
(3) SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 41.
(4) Ibid., p. 64.
(5) Ibid., p. 95.


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