Quem, no século XVIII, se atrevia a empreender a rota monçoeira que ia, partindo de Araraitaguaba (Porto Feliz), até Cuiabá, tinha de enfrentar uma série de obstáculos. Além da longa viagem, dos ataques de mosquitos, carrapatos, onças e outras feras de diversos tamanhos, da fome como ameaça constante, dos possíveis confrontos com indígenas - o que já seria suficiente para demover a maioria das pessoas de uma rota assim - havia a transpor nada menos que cento e treze cachoeiras (¹), algumas maiores, outras menores, quase todas perigosas, não sendo fato raro encontrar, enroscado às raízes de árvores das margens dos rios, algum cadáver de monçoeiro que se afogara na perigosa travessia.
Salto do Avanhandava, de acordo com Hércules Florence (⁴) |
Todavia, dentre todas essas cachoeiras, havia uma que, só de ser mencionada, provocava calafrios nos viajantes: era o Salto do Avanhandava, no rio Tietê. Para transpor esse espetacular obstáculo era preciso muito trabalho, tanto de livres quanto de escravos, já que todas as canoas precisavam ser descarregadas para transporte por terra, em meio ao mato que circundava as margens. Um método tão engenhoso quanto antigo era empregado para possibilitar a realização da penosa tarefa: canoas e batelões eram rolados sobre trilhos feitos de toras de madeira, que a espessa floresta que margeava o Tietê provia.
Duas descrições nos darão uma boa ideia do que era o Avanhandava, lugar no qual a natureza fazia uma associação espantosa entre beleza e perigo. O primeiro relato vem do sargento-mor Teotônio José Juzarte, que empreendeu a rota do Tietê em 1769:
"É este Salto de Avanhandava uma obra da natureza cuja altura excede a cinquenta braças que despenhando-se por ele copiosas águas ao ponto que faz uma agradável vista, e figura, causa pavor, e medo, porque fazendo várias figuras, em umas partes à imitação de degraus de sepulcro, em outras fazendo vários redemoinhos pendurados pelo ar, em outras formando grossas e dilatadas fontes à maneira de chafarizes que é tal a bulha que para se ouvirem os homens uns aos outros é necessário gritar, além disto se experimenta nesta paragem um granizo continuado à maneira de chuva, que levanta pela monstruosidade de águas que se despenham seu peso, e sua altura, que caindo em um dilatado espaço que faz embaixo deste salto em o qual são tão grandes as ondas que ninguém as pode penetrar." (²)
O segundo depoimento é de Hércules Florence, desenhista da Expedição Langsdorff que passou pelo local em 1826:
"O salto de Avanhandava é uma bela e majestosa catarata. Corta o rio segundo uma linha oblíqua, de modo que a víamos bem de frente. Sua largura pode ser de 300 braças, a altura de 40 pés, o que, com a inclinação do álveo, antes e depois da queda, dá os 60 pés entre o porto superior e o inferior. À direita veem-se as águas se precipitarem entre a margem umbrosa, uma ilhazinha coberta também de árvores e uns grandes penedos. Forma-se, pois, duas gargantas por onde atiram-se as massas líquidas em tal agitação e revolvimento de espumas, que densas nuvens de vapores se erguem com neblina cerrada. As águas que caem pelo lado do grande maciço de rocha não são tão revoltas: milhares de cascatinhas divididas por pontas de rochedos constituem um anfiteatro de pedra riscado por fios d'água, alva como neve.
O grande maciço não se prende à margem esquerda. De permeio a eles fica uma ilha, e no intervalo lançam-se, espumantes e furiosas, espadanas de água, que se desfazem em vapores." (³)
Salto do Avanhandava, em imagem de 1920 (⁵) |
As diferenças de abordagem nos dois trechos acima devem-se, naturalmente, às distintas perspectivas de seus autores. O primeiro, Juzarte, enfrenta a fúria do salto com preocupação, diante da responsabilidade de ter de passar o Avanhandava com sua gente, que conduz em viagem repleta de contratempos pelo Tietê, para ir povoar uma difícil área de fronteira; já Hércules Florence lança à paisagem seu olhar de artista, buscando na imensa massa de água o equilíbrio estético, a perspectiva correta, que almeja refletir em seus desenhos. Os dois, cada um a seu modo, deixaram um testemunho precioso de um espetáculo que desapareceu. À semelhança de Sete Quedas, hoje sob as águas de Itaipu, o Salto do Avanhandava foi engolido pela represa da Usina Hidrelétrica de Nova Avanhandava. Restam apenas o nome e as imagens do passado, três das quais estão nesta postagem.
Outra imagem do Avanhandava, também de 1920 (⁶) |
(1) Segundo o Padre Ayres de Casal, em Corografia Brasílica:
"...das cento e treze, que os navegantes encontram de Porto Feliz até Cuiabá."
(AYRES DE CASAL, Manuel. Corografia Brasílica vol. 1. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 271.)
(2) Citado em:
TAUNAY, Affonso de E. História das Bandeiras Paulistas 3ª ed., vol. 3. São Paulo: Melhoramentos, 1975, pp. 248 e 249.
(3) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 40.
(4) Ibid., p. 54. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(5) A CIGARRA, 15 de setembro de 1920.
(6) A CIGARRA, 1º de setembro de 1920.
Parabéns pelo texto e pelo registro de memória de uma paisagem tão castigada pelo desenvolvimento da poluição.
ResponderExcluirUma volta aos tempos da minha infância quando, acompanhando meu saudoso pai, lá estivemos em atividades de pescaria. Obrigado.
ResponderExcluirQue bela lembrança!
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