domingo, 27 de fevereiro de 2011

Escolas de primeiras letras nos dias da palmatória

Nos tempos coloniais, e mesmo durante o Império, muitas escolas tinham religiosos como professores, o que é facilmente compreensível se levarmos em consideração que, excetuando-se os jovens destinados pelos pais à carreira do Direito, em geral apenas os futuros sacerdotes é que realizavam estudos mais extensos e, portanto, tinham condições de ensinar. Os docentes não-membros do clero tornaram-se mais frequentes à medida que avançavam os anos do século XIX e, com eles, influências estrangeiras no campo da educação começaram a aportar no Brasil, contribuindo para mudar a face do sistema de ensino vigente, se é que se pode falar em "sistema de ensino" no Brasil daquela época. O fato é que, como regra geral, escola de verdade era apenas para os filhos das camadas mais altas da sociedade, como preparação para cursar Medicina ou Direito, nas poucas instituições existentes no País ou, o que não era incomum, nas universidades europeias. Quanto às meninas ricas, se não viviam em locais distantes das áreas urbanas, também frequentavam colégios, nos quais aprender piano e francês era uma questão de honra, sem descuidar, naturalmente, daquelas habilidades que deveriam valorizar uma jovem para o casamento, segundo os padrões então vigentes.
E os filhos do povo? Pouquíssimas meninas chegavam a frequentar aulas, enquanto os meninos, encaminhados à Escola de Primeiras Letras (quando havia uma por perto), somente aprendiam, com sorte, a ler, escrever e fazer contas. O que fugisse disso poderia ser considerado um caso excepcional.
A grande questão que se coloca é: como funcionavam as Escolas de Primeiras Letras no interior do País, destinadas aos meninos de baixa condição social? Nesse caso, a Literatura pode ajudar bastante. Selecionei dois trechos que darão uma ideia bastante razoável do pesadelo que deveria ser frequentar tais estabelecimentos de ensino. O primeiro é de José de Alencar, o segundo, de Aluísio Azevedo.

"Havia em Santa Bárbara uma aula pública de primeiras letras, à qual ainda o vulgo pelo costume antigo tratava de escola régia. Servia de mestre um latagão de verbo alto e punho rijo, que fora outrora ferrador e a quem chamavam Domingão.
Fiel às tradições da antiga profissão, entendia ele lá de si para si que um bom processo de ferrar bestas devia de ser por força excelente método de ensinar a leitura e a tabuada: e fossem tirá-lo dessa ideia! Assim encaixava o abecê na cachola do menino com a mesma limpeza e prontidão com que metia um cravo na ferradura. Era negócio de dois gritos, um safanão e três marteladas." (¹)

"Aos sete anos entrou para a escola. Que horror !
O mestre, um tal Antônio Pires, homem grosseiro, bruto, de cabelo duro e olhos de touro, batia nas crianças por gosto, por um hábito do ofício. Na aula só falava a berrar, como se dirigisse uma boiada. Tinha as mãos grossas, a voz áspera, a catadura selvagem; e, quando metia pra dentro um pouco mais de vinho, ficava pior." (²)

Sim, leitor, devia ser um pesadelo ter de frequentar uma escola dessas, cujos problemas começavam pela questão da absoluta falta de preparo dos "professores" e iam esbarrar na inexistência de uma política nacional de educação que enfrentasse, antes de mais nada, a necessidade de combater o horripilante analfabetismo que grassava entre a população. Não que a totalidade das escolas fosse  assim, mas o fato de a Literatura estar permeada de retratos fantasmagóricos de salas de aula nos leva à óbvia conclusão de que esse "fenômeno" nada tinha de incomum, o que não chega a ser espantoso, se relembrarmos o fato de que ainda na atualidade, mesmo em alguns países tidos como muito civilizados, permite-se o uso de coerção física para disciplinar a criançada. É a prevalência de um princípio tão velho quanto sórdido que sustenta que, se funcionou no passado, tem de continuar funcionando hoje. E funciona mesmo, pois sempre produziu gerações de neuróticos traumatizados que, uma vez adultos, continuaram a usar sadicamente, para com as novas gerações, os mesmos métodos brutais a que foram submetidos na infância.

(1) ALENCAR, José de. Til.
(2) AZEVEDO, A. Casa de Pensão.


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2 comentários:

  1. Muito bom. E de fato foi assim mesmo e esse método feito com tanta brutalidade durou por muito tempo,pois meu pai, hoje com 43 anos de idade, conta de sua professora do primário e ensino fundamental e a tal "palmatória" .

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    1. Então esse caso, contado por seu pai, é até recente, em termos de história! O pior é que ainda há quem acredite que crianças só podem ser educadas assim.

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