domingo, 20 de fevereiro de 2011

O pequeno cisne de Odense - entre o doce conto infantil e a amarga crítica social

"É uma delícia flutuar na água, disse o patinho; é delicioso senti-la correr sobre sua cabeça quando você mergulha até o fundo."
H. C. Andersen, O Patinho Feio


Você diria, leitor, que o pequeno cisne da foto ao lado é feio? Parece que há algo em nós que nos leva a desenvolver certa ternura pelos filhotes em geral, sejam lá de que espécie forem. Todavia, como o conto de Hans Christian Andersen nos obriga a recordar, as coisas podem não ser tão favoráveis quando se é muito diferente da maioria, mesmo sendo um "filhote fofinho".
Pois bem, relembrando a infância, o patinho feio foi o último filhote a sair do ovo, na ninhada de uma pata (como teria ido parar lá?), no início da primavera. A orgulhosa mãe foi logo atormentada pelos demais patos, não por causa dos patinhos amarelinhos, seus filhotes "normais", mas pelo esquisito filhote grandalhão e acinzentado. Entre a pataria perguntava-se: "Será que ele é um peru?"
Patos e galinhas não davam paz ao "monstrinho". Cansado da zombaria (nós diríamos, do bullying), o patinho feio foge e vai dar com um bando de gansos selvagens, que admitem sua companhia "desde que não queira se casar com ninguém de sua família". Ocorre que, dias depois, os gansos selvagens são alvo de caçadores, fazendo com que o pobre serzinho, para escapar dos tiros, tenha novamente que fugir apavorado. Foi meter-se em um galinheiro e, visto pela velha dona da casa, foi considerado uma pata que deveria botar ovos. Fugindo também dali, viu, ao aproximar-se o outono, um grupo de cisnes em um lago e admirou sua beleza. Os dias foram ficando mais frios e, com a chegada do inverno, o lago congelou. Poderia ter morrido de frio, mas um camponês que passava levou-o para casa. Tiranizado pelas crianças, fugiu ainda essa vez, a custo conseguindo sobreviver ao terrível inverno.
Mas a primavera retornou e, com ela, os belos cisnes do lago. Observando desde a margem, o patinho decidiu aproximar-se deles, supondo que seria morto por tanta ousadia. Os cisnes também nadaram em sua direção, de modo que baixou a cabeça esperando o primeiro golpe. Ao fazê-lo, viu sua própria imagem refletida na água, não mais de um patinho cinzento, mas de um cisne espetacular, em plena juventude.
Essa é a história de Andersen. Por que gostamos tanto dela?
Aposto que, antes de mais nada, todos nós nos identificamos um pouco com o patinho. Não creio que haja ser humano sobre a terra que não tenha experimentado, alguma vez, a estranha sensação de "estar fora de lugar". É minha opinião que essa história expressa muito bem a realidade vivida pelo próprio Andersen em sua infância e juventude - menino pobre de Odense, perdeu os pais muito cedo, e corria um boato nas redondezas (provavelmente infundado) de que talvez fosse filho do rei da Dinamarca. Entretanto, por ser muito talentoso, acabou por triunfar, ganhando fama internacional. Mas o caso não acaba aí, pois se acabasse, poderíamos até dizer que Andersen era a versão humana do patinho feio (a propósito, seus biógrafos dizem que ele se achava mesmo muito feio).
Andersen não foi o que se pode chamar, exatamente, de uma pessoa muito ajustada. Enfrentou, ao longo de sua vida (1805 - 1875), o problema de ver-se, a despeito da genialidade, amarrado às teias de uma sociedade muito rígida, em que a posição determinada pelo nascimento era decisiva, refletindo-se nas possibilidades de relacionamento e mesmo de aceitação. O que é fascinante é o fato de que, durante os séculos de sociedade estamental, milhões de pessoas ajustadas aceitaram a condição em que nasceram sem questionamentos, e viveram suas vidas "normais" sem qualquer grande novidade - enquanto isso, um "desajustado" como Hans Christian Andersen escreveu O Patinho Feio e muitas outras obras, ganhou notoriedade e respeito e deixou uma obra que ainda encanta e continuará a fazê-lo enquanto as desigualdades e injustiças de toda natureza tiverem lugar neste planeta. Nesse sentido, esse aparentemente singelo conto infantil repudia a zombaria dos patos, as bicadas das galinhas e as esporadas dos galos (falo em sentido figurado, evidentemente), destaca a estupidez de discriminar o diferente apenas por não ser como o "padrão" e lembra que, ao menos no que tange ao tempo da natureza, a primavera sempre retorna após cada inverno.


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