terça-feira, 17 de novembro de 2020

Esperando a volta do bandeirante

Ela viera do Reino ainda menina e com quinze anos incompletos o pai a casara com um português da terra, duas vezes viúvo e dono de uma casa na vila, com a correspondente criação de porcos e galinhas, e de umas roças de milho e feijão nas redondezas. Passava por rico e, poucos meses depois do casamento, sem muitas explicações, se juntara a uma tropa que, no rumo do sertão, fora procurar ouro e descer índios para a lavoura. Sendo já passados mais de quatro anos, nunca mais se ouvira falar no bando de aventureiros. Por onde andarão? Estarão ainda vivos? Ninguém sabe dizer.
Ela espera e espera... O assoalho de madeira range sob seus pés, enquanto vai à janela pela vez infinita. Fragmentos do existir chegam através da gelosia - o patear dos animais de carga pela ruazinha tortuosa, os resmungos dos tropeiros, uma cabra fugitiva denunciada pelo guizo que leva ao pescoço, os brados de uma vendedora de pães e doces - a vida e a visão se perdem na distância.
- Mamã!...
Os pensamentos se interrompem.
- Mamã, olha!...
É o seu menino quem balbucia, à porta. Dois companheiros cor de bronze, olhos faiscantes e cabelos negros, sorriem, enquanto um deles segura algo entre os dedos. Abaixa-se e deixa voejar um filhote de sanhaço.
- Ah, é tão novinho, onde o pegaram?
O mais velho, com seus sete anos, explica:
- Embaixo da pitangueira, caiu do ninho...
Mais um instante e lá se vão, a correr para o pátio. Ouve-se, entre risos, a algaravia que amalgama o português ao tupi e que, inutilmente, ela tenta compreender. 
Volta, então, à cadeira e retoma o bordado. Ajusta o tecido no bastidor, tem já a linha na agulha e trabalha. Entre um ponto e outro, estranhas inquietações que tornam imperceptível o correr das horas.
Na igrejinha da vila o sino toca para o Angelus. Ela se une às escravas para rezar. Pedem pelos que estão, pelos que foram. Voltarão?
Anoitece, a oração termina. Velas de sebo rústico quebram a escuridão, enquanto lá fora começa a cair uma chuvinha gelada. À espera do bandeirante, ela vai mais uma vez à janela. A vila é só silêncio e trevas.
Partindo da cozinha, o aroma da ceia se espalha pela casa.


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2 comentários:

  1. Recriação histórica passa muito por isto, onde a visão do historiador, desprezando as defesas, fica à vista de todos.
    Os meus parabéns, Marta!

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    1. Obrigada. Tentei deixar fluir a imaginação, sem fugir à realidade da época que o texto procura retratar.

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