domingo, 5 de abril de 2015

Procissões de Sexta-feira Santa e de Domingo de Páscoa em uma aldeia indígena no Século XVI

A música e as festas - os jesuítas perceberam em seu contato com os indígenas do Brasil - eram recursos poderosos na catequese. Serviam para atrair a atenção e pareciam estar em maior conformidade com as tradições nativas do que os sisudos cerimoniais adotados nos ofícios religiosos que eram praticados entre os colonos. Portanto, a Semana Santa era sempre uma ocasião especial nas missões (¹). O padre visitador Cristóvão de Gouvêa teve a oportunidade de verificar, na prática, como procediam os missionários e os indígenas nesses festejos, ao viajar pela Colônia entre 1583 e 1590. Os acontecimentos dessa viagem foram registrados pelo também jesuíta, padre Fernão Cardim, que, em sua Narrativa Epistolar de uma Viagem e Missão Jesuítica, observou, a propósito de uma procissão de Sexta-feira Santa na Aldeia do Espírito Santo, na Bahia:
"A procissão foi devotíssima, com muitos fachos e fogos, disciplinado-se a maior parte dos índios, que dão em si cruelmente, e têm isso não somente por virtude, mas também por valentia, tirarem sangue de si e serem Abaetê, ou seja, valentes. Levaram na procissão muitas bandeiras que um irmão, bom pintor, lhe fez para aquele dia, em pano, de boas tintas, e devotas. Um principal velho (²) levava um devoto crucifixo debaixo do pálio; o padre visitador lhe fez todos os ofícios que se oficiaram a vozes com seus bradados." (³)
Tentem imaginar a cena, leitores.
Pode parecer chocante, para nós, do Século XXI, que os índios catequizados praticassem a autoflagelação tão de-vo-ta-men-te. Mas o caso é que, em sua cultura, isso não era uma pura e simples prova de devoção. Era antes evidência de coragem, valentia, força, tudo muito pouco compatível, afinal, com a contrição esperada pelos religiosos da época, mas perfeitamente de acordo com os valores mais celebrados entre os guerreiros indígenas.
Não sabemos o que terá passado pela cabeça do padre visitador, se terá ele compreendido ou não qual era a interpretação que faziam os indígenas dos rituais que praticavam. Mas é fato que Cardim o entendia muito bem, porque não hesitou em dizê-lo em sua Narrativa Epistolar.
Veio o domingo da Ressurreição, e novas celebrações ocorreram na aldeia, dessa vez mais alegres:
"Ao dia da ressurreição se fez uma procissão por ruas de arvoredo muito frescas, com muitos fogos, danças e outras festas; comungaram quase todos os da comunhão, que são perto de duzentas pessoas." (⁴)
Fato curioso é que o padre Cardim, antes de mudar de assunto na Narrativa Epistolar, cuidasse em dizer qual era o procedimento adotado pelos valentes indígenas para tratamento das feridas resultantes da autoflagelação:
"Esquecia-me dizer que os lavatórios cheirosos e pós de murtinhos com que se curam estes índios quando se disciplinam são irem-se logo meter e lavar no mar ou rios, e com isso saram, e não morrem." (⁵)
Pode-se bem imaginar que ferimentos eram esses, capazes de levar alguém à morte se não fossem tratados...

(1) As missões eram aldeamentos de indígenas sob supervisão de jesuítas. Em muitos casos, eram povoações forçadas pelas autoridades coloniais, que impunham o fim do nomadismo como condição para a paz.
(2) Chefe indígena.
(3) CARDIM, Pe. Fernão, S. J. Narrativa Epistolar de Uma Viagem e Missão Jesuítica. Lisboa: Imprensa Nacional, 1847, pp. 58 e 59.
(4) Ibid., p. 59.

4 comentários:

  1. Cena inimaginável, nessa Narrativa Epistolar!
    Os índios se sujeitavam à coisas incríveis...

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    1. Os europeus colonizadores, também. Era usual, e não apenas entre os membros de ordens religiosas. Nos tempos medievais, e mesmo muito depois, procissões de flagelantes percorriam cidades europeias, não só na Semana Santa.

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  2. Ainda acontece num ou outro lugar remoto deste mundo, facto que me causa uma certa náusea.
    Beijinho

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    1. Sim, em uma porção de lugares. No Rio de Janeiro o próprio bispo proibiu, se não me engano, ainda no Século XVIII.

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