segunda-feira, 19 de abril de 2010

Tiradentes - desmi(s)tificando a desmi(s)tificação do mito

Uma reflexão sobre a figura de Tiradentes como herói da Independência do Brasil


Na Antiguidade, os gregos tinham seus heróis, tais como Hércules, Aquiles, Perseu e outros mais, que se diferenciavam dos deuses porque, ao contrário desses últimos, eram mortais (Hércules tornou-se uma exceção, é verdade, mas isso não invalida a regra). A explicação era simples: os heróis eram filhos de um deus com uma mortal. Portanto, a praga da mortalidade também os alcançava, embora fossem capazes, por sua origem semidivina, de realizar feitos espetaculares, normalmente vedados aos humanos "comuns". Assim como os deuses, tinham defeitos de caráter bem parecidos com os dos homens, não faltando quem tecesse críticas a essas crenças, no sentido de considerá-las desastrosas para a educação dos jovens. É o que podemos ver, por exemplo, na República, de Platão, o que não impediu que tanto deuses como heróis continuassem a ser objeto da religiosidade para a maioria dos gregos.
Entretanto, leitor, no Brasil as coisas são muito diferentes! O País foi descoberto por acaso (não vale a pena perder tempo com essa discussão), Tiradentes era apenas um falastrão incompetente, D. Pedro I, um mulherengo e governante incapaz. Ou seja, nada de heróis! Viva a mediocridade, mesmo porque ela não tem o mau hábito de incomodar a concorrência.
Se você já tentou entender a causa de tanto amor pelo andar na contramão, talvez tenha pensado que seja influência do pensamento marxista (vide O 18 Brumário de Luís Bonaparte). Discordo, embora reconheça que há, por aqui, um certo costume de transformar citações descontextualizadas de Marx em algum tipo de categoria axiomática, impossibilitando qualquer discussão ou questionamento, o que é, por suposto, um absurdo, pois vai contra a própria essência do marxismo. O problema, a mim me parece, é outro, é a ideia de que é preciso negar tudo o que é brasileiro, transformando em verdadeira questão de honra a suposta necessidade de "desmi(s)tificar o mito". Vejamos, como exemplo, o caso de Tiradentes, já que estamos perto da data comemorativa de sua execução.
Tem-se dito que o Alferes de Minas Gerais só veio a ser proposto como herói no calor da agitação política que, em fins do período imperial, propunha a mudança de regime, sendo necessário levantar um nome que sintetizasse as aspirações do movimento republicano. E isso poderia até parecer verdade, bastando dar uma olhada na letra do Hino da República ("Se é mister que de peitos valentes haja sangue no nosso pendão / Sangue vivo do herói Tiradentes batizou esse audaz pavilhão"), não fosse o caso de que os fatos demonstram o contrário.
O primeiro partido republicano brasileiro, o P.R.P. (*), foi formalmente estabelecido em abril de 1873. Pois em 25 de abril de 1865 (oito anos antes, portanto), em artigo publicado no Diário do Rio de Janeiro, Machado de Assis defendia a inclusão de Tiradentes entre os heróis nacionais e, mesmo reconhecendo a característica republicana da Inconfidência Mineira, apelava ao espírito esclarecido do Imperador D. Pedro II, para que o único a pagar com a vida em 1792, por ter-se metido com ideais de independência, fosse homenageado, tanto quanto D. Pedro I ou José Bonifácio. Fica assim demonstrado que o mito de Tiradentes não foi inventado pela campanha republicana. Fica demonstrado que Tiradentes não havia sido simplesmente esquecido depois de sua execução.
Mas não paramos por aqui. É voz corrente entre a população de Congonhas do Campo (Estado de Minas Gerais) que Antônio Francisco Lisboa teria se inspirado na fisionomia de Tiradentes para esculpir o rosto de Jesus para as capelas da Via Sacra em Bom Jesus de Matosinhos, obra executada, é bom que se diga, entre 1796 e 1799, quando os acontecimentos relacionados à Inconfidência ainda deviam estar nítidos na memória de seus contemporâneos. Isso poderia explicar a frequente associação da imagem de Jesus com a de Tiradentes, a que muitos se referem no sentido de descaracterizar o "mito". Pois sim, pode-se ter aí apenas crendice popular, é forçoso admitir. Mas, em uma das capelas, a belíssima escultura de Cristo tem um detalhe singular: uma mancha de sangue ao redor do pescoço. Ora, Jesus não foi enforcado e sim crucificado. Tiradentes foi enforcado. Como sempre digo, leitor, a decisão é sua. Eu apenas lhe dei ferramentas para refletir sobre o assunto.
Não é minha intenção defender a construção idealizada, para não dizer irresponsável, de determinadas personagens, como já se tem visto, quase sempre com fins políticos. Não é preciso inventar - a pesquisa histórica existe justamente para assegurar uma perfeita ancoragem em fatos reais. Entretanto, talvez devamos aprender com os antigos gregos a valorizar as ações significativas, ao mesmo tempo em que concedemos aos heróis modernos o direito de se mostrarem autenticamente humanos e, por isso mesmo, imperfeitos, como todos nós. Vale ainda ponderar que, se os heróis são ruins, incapazes de expressar valores nacionais, será melhor substituí-los por gente mais adequada. Quem acha que Tiradentes e outros  mais não passam de figuras prosaicas deve, obrigatoriamente, apresentar outros candidatos à função, e isso por uma razão muito simples: não sendo possível encontrar substitutos à altura, segue-se que, provavelmente, não há brasileiros dignos desse posto. E com isso eu jamais poderia concordar.

(*) Partido Republicano Paulista.


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