terça-feira, 14 de setembro de 2010

Paixão à flor da pele: As eleições no Brasil durante o Império

"Tudo é um; amor ou eleições, não falta matéria às discórdias humanas."
Machado de Assis, Memorial de Aires

A Constituição Imperial, outorgada em 1824, estabelecia, todos sabem, o chamado "voto censitário", ou seja, eleitores e candidatos tinham que ter uma renda mínima anual, de acordo com o posto que pleiteavam, além, é claro, de outras qualificações. O sistema era algo complexo, como se verá, organizado em uma intrincada rede de eleições indiretas.
O Capítulo VI, em seu Artigo 90 estabelecia que "as nomeações dos deputados e senadores para a Assembleia Geral, e dos Membros dos Conselhos Gerais das Províncias, serão feitas por eleições indiretas, elegendo a massa dos cidadãos ativos em Assembleias Paroquiais os eleitores de Província, e estes os representantes da Nação e Província." (*)
Simplificando, os eleitores de Paróquia escolhiam os eleitores de Província, que escolhiam os representantes para o Conselho Geral da respectiva Província, bem como os Deputados para a Câmara dos Deputados e os Senadores (para o Senado, evidentemente).
Acontece que, para ser eleitor de Paróquia (o nível mais baixo), era necessário preencher uma série de requisitos, ficando excluídos, por exemplo, os que tivessem menos de 25 anos (exceto "os casados, e oficiais militares, que forem maiores de vinte e um anos, os Bacharéis formados, e clérigos de Ordens Sacras"), os "criados de servir", os religiosos conventuais e "os que não tiverem de renda líquida anual cem mil réis por bens de raiz, indústria, comércio, ou empregos".
Já para ter a condição de eleitor de Província (um degrau acima, portanto), era preciso corresponder às mesmas condições dos eleitores de Paróquia, além de outras mais, que excluíam os que não tivessem "de renda liquida anual duzentos mil réis por bens de raiz, indústria, comércio, ou empregos", os libertos e os criminosos pronunciados.
Veja, leitor, até aqui estamos tratando apenas de eleitores, não daqueles que podiam candidatar-se a algum cargo. Mas prossigamos.
Para ser candidato a deputado era preciso cumprir as exigências de um eleitor de Província, além de ter quatrocentos mil réis de renda líquida, ser brasileiro nato e professar a "Religião do Estado". E, finalmente, para ser senador, era necessário ter idade de "quarenta anos para cima", que fosse "pessoa de saber, capacidade, e virtudes", preferencialmente os que tivessem "feito serviços à Pátria", além de apresentarem como renda mínima anual "por bens, indústria, comércio, ou empregos, a soma de oitocentos mil réis".
Ainda não acabamos. Dizia a Constituição, no Capítulo III, artigos 40 e 43:
"Artigo 40 -  0 Senado é composto de membros vitalícios, e será organizado por eleição provincial.
Artigo 43 -  As eleições serão feitas pela mesma maneira que as dos deputados, mas em listas tríplices, sobre as quais o Imperador escolherá o terço na totalidade da lista."
Portanto, em se tratando das eleições para o Senado, a última palavra pertencia ao Imperador.
Ora, leitor, se quisermos ser justos, temos de admitir: Seria estranho, em época na qual, País afora, as diversões eram escassas, que as eleições e assuntos correlatos acabassem por empolgar a população que de algum modo estivesse com elas envolvida? Seria surpreendente que acabassem por despertar paixões exacerbadas? Que surgissem às vezes (quase sempre!) graves desentendimentos? As eleições incluíam, por definição, a disputa por cargos, além de questões como interesses econômicos e posição social, dado o seu caráter censitário. Não estavam, pois, estruturadas de modo a despertar o que poderia haver de melhor e pior na natureza humana? Não podiam suscitar, lado a lado, o desejo de envolver-se com a resolução das grandes questões nacionais, bem como os mais egoístas e infames sentimentos?  Da consequência disso trataremos na próxima postagem.

(*) Todas as citações da Constituição Imperial são provenientes da seguinte obra: Collecção das Leis e Decretos do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Imperial Typographia P. Plancher-Seignot, 1827, pp. 157-176.

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