quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Tomás Antônio Gonzaga, o ser humano escondido atrás do herói Dirceu

Primeira página da edição de 1799 de
Marília de Dirceu
Tomás Antônio Gonzaga, o famoso autor de Marília de Dirceu, é chamado, muitas vezes, de "Poeta da Inconfidência", embora jamais tenha celebrado favoravelmente o movimento de independência de que, supõe-se, tenha participado, além de não ser, entre os listados como revoltosos, o único que compunha versos. Como magistrado, já havia escrito um Tratado de Direito Natural, mas são os versos árcades de Marília de Dirceu que o tornaram conhecido.
Ora, inconfidente ou não, Gonzaga foi preso entre os rebeldes e levado à prisão no Rio de Janeiro. Lá, pelo que se sabe, continuou a compor versos, nos quais lamentava sua condição de prisioneiro:

Com pesadas cadeias manietado,
Às vozes da razão ensurdecido,
Dos céus, de mim, dos homens esquecido,
Me vi de amor nas trevas sepultado.

Ali aliviava o meu cuidado
Co' dar de quando em quando algum gemido.
Ah! tempo! Que, somente refletido,
Me fazes entre as ditas desgraçado.

Mas não era só. Tentava mostrar que não era um dos conjurados (pelos Autos da Devassa, sabemos que nem mesmo Tiradentes o considerava um!), ao atacar, sempre em versos, a rebelião antilusitana e o alferes que todos incriminavam como cabeça da sedição:

Há em Minas um homem,
Ou por seu nascimento ou seu tesouro,
Que aos outros mover possa
À força de respeito, à força d’ouro?
Os bens de quantos julgas rebelados
Podem manter na guerra,
Por um ano sequer, a cem soldados?

Ama a gente assisada
A honra, a vida, o cabedal tão pouco,
Que ponha uma ação destas
Nas mãos dum pobre, sem respeito e louco?
E quando a comissão lhe confiasse,
Não tinha pobre soma,
Que por paga ou esmola, lhe mandasse!

É notório que o "pobre, sem respeito e louco" só pode ser o Alferes Joaquim José da Silva Xavier. Mas, contrariando talvez a opinião de muitos, não considero Tomás Antônio Gonzaga um traidor da Inconfidência. Qualquer pessoa, metida em escura e imunda prisão, correria o risco de fraquejar ante a possibilidade de uma sentença de morte. Qualquer pessoa de uma certa posição social, tanto em Vila Rica como nas adjacências, podia, na época, ter entrado em contato com defensores das ideias iluministas e, nesse caso, corria o risco de ser incluída entre os acusados da conspiração, e é razoável imaginar que o próprio Gonzaga, ainda que português de nascimento, tenha ocasionalmente entretido conversas a respeito, sem considerar que, de algum modo, acabaria envolvido em um processo que mudaria radicalmente o curso de sua vida. Há que acrescentar que, pelos depoimentos, sabe-se que ele não foi o único a tentar escapar da condenação - ele é lembrado porque deixou seu próprio testemunho, nos versos de Marília de Dirceu. Talvez em breves instantes de esperança, Gonzaga imaginava-se inocentado, a ponto a de escrever:

Chegando este dia,
Os braços daremos:
Então mandaremos
De gosto e ternura
Suspiros aos céus.
Pôr-me-ão no sepulcro
A honrosa inscrição:
“Se teve delito,
Só foi a paixão,
Que a todos faz réus.”

Mas a absolvição não veio. Os inconfidentes foram, todos, sentenciados à morte, mas tiveram a pena comutada, à exceção, é claro, da atribuída a Tiradentes. E o poeta, mais uma vez, pôs em versos a angústia diante da condenação a dez anos de degredo na África, o que equivalia, quase sempre, a uma sentença de morte, pela elevada probabilidade de lá contrair uma doença fatal:

Parto, enfim, e vou sem ver-te,
Que neste fatal instante
Há de ser o teu semblante
Mui funesto aos olhos meus.
Ah! não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!
E crês, Dirceia, que devem
Ver meus olhos penduradas
Tristes lágrimas salgadas
Correrem dos olhos teus?
Ah! não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!

Há uma terceira parte de Marília de Dirceu cuja autoria é bastante controversa. Foi publicada em 1812, portanto após a morte do poeta. Admite-se, de um modo geral, que Tomás Antônio Gonzaga passa ter ao menos rascunhado parte desses versos, dentre os quais encontram-se alguns tidos como muito provavelmente seus:

Leu-se-me enfim a sentença
Pela desgraça firmada;
Adeus, Marília adorada,
Vil desterro vou sofrer.
Ausente de ti, Marília,
Que farei? irei morrer.

Que vá para longes terras,
Intimarem-me eu ouvi;
E a pena que então senti,
Justos céus! não sei dizer.
Ausente de ti, Marília,
Que farei? irei morrer.

[...].

Da desgraça lei fatal
Pode de ti separar-me:
Mas nunca d'alma tirar-me
A glória de te querer.
Ausente de ti, Marília,
Hei de amar-te até morrer.

Ah, leitor, tenha Tomás escrito ou não esses versos, é fato que não tornou a ver Marília. Mas também não morreu de amores: já em Moçambique, conheceu Juliana de Sousa Mascarenhas, jovem de elevada posição, com quem se casou em 1793 e teve pelo menos um filho. Veja bem em que deram os versos de amor...
Tomás Antônio Gonzaga nunca tornou ao Brasil, pois continuou a viver no lugar de seu desterro mesmo após a conclusão da pena, onde morreu  provavelmente em 1810, embora o site oficial da Academia Brasileira de Letras, da qual é patrono da Cadeira 37, informe a data de fevereiro de 1807.
Quanto a Marília (Maria Doroteia Joaquina de Seixas Brandão), ao termo dos dez anos de degredo de "Dirceu", parece ter ido ao Rio de Janeiro para cuidar de uma viagem a Lisboa, a fim de reencontrar Gonzaga, mas teria, ainda no Rio, recebido a informação de que ele se casara na África, o que a fez retornar a Vila Rica. Está sepultada na Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias em Ouro Preto, tendo falecido em fevereiro de 1853. Note-se apenas: morreu solteira.


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