terça-feira, 6 de julho de 2021

Alimentação e fardamento dos soldados na Província de Mato Grosso na segunda metade do Século XIX

"Não sei o que irá pelas outras Províncias quanto à sorte do soldado, mas nesta é ela miseranda" (¹) - foi o que disse João Severiano da Fonseca, médico veterano da Guerra do Paraguai. A Província de que falava era a de Mato Grosso, ao descrever a ração oferecida aos soldados em Vila Bela da Santíssima Trindade, "a qual", afirmou, "tanto para o são como para o doente, consiste em farinha, rapadura e sal, algumas vezes carne-seca e bacalhau, feijão e arroz, raríssimas vezes carne verde, sendo um verdadeiro acontecimento para toda a cidade o abatimento de uma rês [...]" (²).
Se essa fala revela alguma coisa dos hábitos alimentares na Província de Mato Grosso na época, mostra, também, que a situação dos soldados era precária quanto à alimentação. Nada mais razoável supor que os gêneros alimentícios para a tropa fossem obtidos nas redondezas, porque, estando a Província de Mato Grosso longe dos principais centros urbanos da época, não se poderia esperar que deles viessem os alimentos. Pela distância e condições de transporte, seriam caríssimos e chegariam imprestáveis. É, contudo, quase uma obrigação perguntar: o que iria bacalhau fazer tão longe do oceano, lá no coração da América do Sul? Talvez parecesse mais fácil ter peixe seco e carne-seca na alimentação dos soldados do que incentivar a produção de alimentos frescos na área, uma medida que seria útil não só para a tropa, mas para toda a população local. Será que ninguém pensou nisso? Seria querer demais?
Mas não era só na alimentação que penavam os soldados. Nada muito diferente acontecia quanto ao fardamento. Cada um recebia uma ajuda de custo, paga de raro em raro, e estava na obrigação, por conseguinte, de providenciar o uniforme correspondente: "O fardamento com dificuldade e a longos espaços recebe; e entretanto é obrigado a apresentar-se vestido, calçado e coberto, com uma blusa ou sobrecasaca, sapatos ou botinas, boné ou mesmo chapéu, objetos que compra fiados para pagar quando lhe chegarem os soldos (³)." 
Tentem visualizar, leitores, o que acontecia então na ocorrência de uma parada militar. O relato de João Severiano da Fonseca pode ajudar: "Com este sistema de fardamento era apreciável, pela extravagância, a vista que apresentava a tropa em parada, cada soldado fantasiado, não como o permitiam as suas forças, nunca consultadas para isso, mas levadas por outras circunstâncias especiais (⁴)."
Não será demasiado recordar que, sendo essa uma região de fronteira; havia necessidade premente de ocupá-la com eficiência. A Guerra do Paraguai já era coisa do passado, e, pelas dificuldades logísticas que evidenciara, deveria ter ensinado alguma coisa. Mas, terminado o conflito, pouco ou nada mudara. Por dedicados que fossem os soldados, não se poderia esperar muito deles, devido às condições em que viviam. O próprio João Severiano da Fonseca admitiu que, para melhorar a alimentação, os homens deixavam suas ocupações militares de rotina, com o "velho e inservível material de guerra" (⁵) no quartel, para obter, na caça e na pesca, um complemento às magras refeições que lhes eram proporcionadas. Ao menos exercitavam a pontaria.

(1) FONSECA, João Severiano da. Viagem ao Redor do Brasil 1875 - 1878 Volume 2. Rio de Janeiro: Typographia de Pinheiro e C., 1881, p. 113.
(2) Ibid., pp. 113 e 114. 
(3) Ibid., p. 114.
(4) Ibid. 
(5) Ibid., p. 111.


Veja também:

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Democraticamente, comentários e debates construtivos serão bem-recebidos. Participe!
Devido à natureza dos assuntos tratados neste blog, todos os comentários passarão, necessariamente, por moderação, antes que sejam publicados. Comentários de caráter preconceituoso, racista, sexista, etc. não serão aceitos. Entretanto, a discussão inteligente de ideias será sempre estimulada.