terça-feira, 24 de abril de 2012

A companhia de soldados descalços de Martim de Sá

Frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil, conta um fato bastante interessante, relacionado aos tempos coloniais, fato esse de que alegou ser testemunha ocular. Tendo como cenário o Rio de Janeiro e como contexto a tentativa holandesa de ocupação da Bahia, faz um relato que nos permite constatar como viviam muitos colonos no Brasil da primeira metade do século XVII. Para que se compreenda bem o ocorrido, vamos primeiro à leitura do que o próprio Frei Vicente escreveu:
"A vinte e um de dezembro de 1623 partiu de Holanda uma armada de vinte e seis naus grandes, treze do Estado e treze fretadas de mercadores, da qual avisou Sua Majestade ao Governador Diogo de Mendonça que se apercebesse na Bahia e avisasse os capitães das outras Capitanias fizessem o mesmo, porque se dizia virem sobre o Brasil. O Governador avisou logo a Martim de Sá, capitão-mor do Rio de Janeiro, o qual entrincheirou toda a cidade, consertou a fortaleza da barra e fez ir os homens do recôncavo para os repartir por suas estâncias, companhias e bandeiras; e porque muitos não apareciam, por andarem descalços e não terem com que lançar librés, ordenou uma companhia de descalços, de que ele quis ser o capitão, e assim ia diante deles nos alardos descalço e com umas ceroulas de linho, e o seguiam com tanta confiança e presunção de suas pessoas, que não davam vantagem aos que nas outras companhias militavam ricamente vestidos e calçados.
Sem esta, foram muitas as preparações de guerra que fez Martim de Sá nesta ocasião. As mesmas fariam nas outras Capitanias, que a todas se deu aviso até o Rio da Prata, mas faço menção do Rio de Janeiro como testemunha de vista, porque ainda então lá estava."
Vê-se que, em se tratando de comandar na guerra, o senhor Martim de Sá sabia o que era liderar. À parte disso, podemos fazer, a partir do que lemos, algumas observações, a começar pelo fato de que, estando a Corte ciente de que uma armada desse porte vinha ao Brasil, limitou-se, inicialmente, a deixar a defesa da terra, sabidamente bem pouco guarnecida, em mãos dos que já nela estavam. É que, nesse tempo, vigorava a chamada União Ibérica (1580 - 1640), e não se pode negar que a Coroa Espanhola, que estava em pé de guerra contra as chamadas Províncias Unidas (a que hoje chamamos Holanda),  que se haviam há pouco declarado independentes, não dava ao Brasil o mesmo cuidado que dispensava aos demais domínios na América, como México e Peru, por exemplo, que já lhe rendiam muitíssimo metal precioso. As terras brasileiras, ao contrário, iam sendo lentamente povoadas, e embora as capitanias do Nordeste e do Rio de Janeiro já produzissem um volume considerável de açúcar para exportação, não era algo que se comparasse a ouro e prata.
Nota-se também que o "serviço de inteligência", a bisbilhotice e espionagem nas Cortes alheias - sim, isso existia! - não foi capaz de informar para onde exatamente a armada era dirigida, de modo que todas as Capitanias fizeram aprontos para um eventual ataque. Ora, meus leitores, se algum dos senhores fosse, na época, conselheiro da Companhia das Índias Ocidentais, para onde recomendaria que se enviassem as forças de ataque? Para a região mais rica e promissora daqueles dias, certamente... No entanto, há que se considerar que, como governante, Diogo de Mendonça foi prudente em avisar da possível chegada de "visitantes", até por uma razão que hoje não passaria pela cabeça de nenhum navegante, mas que era, antigamente, um problema bem sério: uma armada sabia perfeitamente de onde partia (supõe-se!), mas nunca se tinha uma ideia exata de onde ia chegar, isso porque, mesmo conhecendo aproximadamente o rumo que se pretendia tomar, os ventos e correntes marítimas podiam desviar uma frota de sua rota, de modo que, não raro, acontecia de embarcações destinadas à Bahia, Pernambuco ou Rio de Janeiro irem parar nas Antilhas. Assim, era admissível que a Armada holandesa acabasse por aportar em qualquer ponto da costa brasileira, o que obrigava os defensores portugueses a uma contínua vigilância.
Há quem queira atribuir aos que defendiam a terra contra tentativas de ocupação (vindas principalmente de franceses, ingleses e holandeses) algum tipo de sentimento nativista, mas a mim me parece que a questão é bem mais simples. Os líderes da defesa eram portugueses natos ou seus descendentes, que também se consideravam portugueses, de modo que a noção de "brasilidade" que já se supôs, nesses casos fica bastante enfraquecida. Lutava-se antes de mais nada pela própria vida, pelas respectivas famílias e, como não podia deixar de ser, pelo direito à terra que se estava ocupando e da qual se retirava o sustento quotidiano. O brio militar, o sentimento de honra muito em vigor na época, podiam até dar uma impressão de patriotismo, mas, em última análise, não era algo muito além da luta pela sobrevivência em um lugar distante da Metrópole, com escassos recursos defensivos e do qual, se necessário, ficava quase impossível uma retirada em massa para o Reino.
Finalmente, sobre os soldados descalços: Ser colono no Brasil, para os pobres, não era nada fácil. Andavam descalços a vida toda e, por isso, não causa espanto que não tivessem sapatos para se apresentarem às suas obrigações militares. Mas pode ser mais do que isto. Os bandeirantes de São Paulo aprenderam, com seus cativos indígenas, uma técnica incrivelmente eficaz para se caminhar descalço nas matas. Talvez os colonos do Rio de Janeiro estivessem habituados a essa mesma técnica. Talvez também houvessem aprendido com os índios. Talvez isso seja indício de um processo recíproco de aculturação. Talvez fossem alguns desses colonos descalços, eles próprios, índios ou seus descendentes. Frei Vicente do Salvador não o declara, não temos nesse texto nenhum outro indício, mas o andar da colonização, na primeira metade do século XVII, torna essa uma possibilidade bem real.


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