Já tenho tratado, em outras postagens, da sensação de espanto que a exuberância natural da América propiciava aos exploradores que se atreviam a enfrentar as matas cerradas nos primeiros tempos da colonização. Aparentemente prosaica, se avaliada apenas por suas folhas, uma planta veio a ganhar, aos olhos dos religiosos que empreendiam a catequese dos nativos, um status quase sagrado, não por seus frutos (aliás, excelentes), mas por suas flores: o maracujá.
Flor de Maracujá (³) |
"O maracujá", escreveu Frei Vicente do Salvador , "é outra planta que trepa pelos matos, e também a cultivam e põem em latadas nos pátios e quintais, dá fruto de quatro ou cinco sortes, uns maiores, outros menores, uns amarelos, outros roxos, todos mui cheirosos e gostosos, e o que mais se pode notar é a flor, porque além de ser formosa e de várias cores, é misteriosa, começa no mais alto em três folhinhas, que se rematam em um globo, que representa as três divinas pessoas em uma Divindade ou, como outros querem, os três cravos com que Cristo foi encravado, e logo tem abaixo do globo (que é o fruto), outras cinco folhas, que se rematam em uma roxa coroa, representando as cinco chagas e coroa de espinhos de Cristo Nosso Redentor." (¹)
Outro que se impressionou com a flor do maracujá foi o jesuíta Pe. Simão de Vasconcelos, daí escrever com inegável entusiasmo:
Flor de Maracujá (³) |
"A flor é o mistério único das flores. Tem o tamanho de uma grande rosa, e neste breve campo formou a natureza um como teatro dos mistérios da redenção do mundo. Lançou por fundamento cinco folhas mais grossas, no exterior verdes, no interior sobrosadas; sobre estas, postas em cruz outras cinco purpúreas, todas de uma e outra parte. E logo deste como trono sanguíneo, vai armando um quase pavilhão de uns semelhantes a fios de roco, com mistura de branco. Outros lhe chamarão coroa, outros molho de açoites aberto, e tudo vem a ser. No meio deste pavilhão ou coroa, ou molho, se vê levantada uma coluna branca, como de mármore, redonda, quase feita ao torno, e rematada para mais graciosa com uma maçã ou bola, que tira a ovada. Do remate desta coluna nascem cinco quase expressas chagas, distintas todas, e penduradas cada qual de seu fio, tão perfeitas que parece as não poderia pintar noutra forma o mais destro pintor, senão que em lugar de sangue tem por cima um como pó sutil, ao qual, se aplicais o dedo, fica nele pintada a mesma chaga, formada do pó, como em tinta se poderia formar. Sobre a bola ovada do remate, se veem três cravos perfeitíssimos, as pontas na bola, os corpos e cabeças no ar; mas cuidáreis que foram ali pregados de indústria, se a experiência vos não mostrara o contrário. A esta flor por isso chamam flor da Paixão, porque mostra aos homens os principais instrumentos dela, quais são coroa, coluna, açoites, cravos, chagas." (²)
Os meus leitores hão de concordar que, ao menos, não se pode atribuir falta de imaginação aos teólogos capazes de semelhantes ideias!
Temos aqui, na verdade, um exemplo acabado do que se pode chamar de "espírito de época": vivendo em dias nos quais o pensamento místico-religioso permeava toda a sociedade europeia, os religiosos que tomavam contato com a diversidade natural da América logo viam, em tudo e a cada passo, uma ilustração de suas convicções religiosas. Buscavam, além disso, modos de tornar compreensíveis aos indígenas certos conceitos que, integrando essencialmente a lógica dos missionários, estavam muito distantes do universo cultural dos povos americanos. E foi assim que a espalhafatosa flor do maracujá se tornou a Flor da Paixão, em referência à Paixão de Cristo, que se pretendia ver nela representada, a ponto de, em alguns lugares, serem usados ainda hoje frutos do maracujá na decoração preparada para os rituais da Semana Santa.
(1) SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil. c. 1627.
(2) VASCONCELOS, Pe. Simão de. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, pp. 254 e 255.
(3) Os originais pertencem à Biblioteca Nacional; as imagens foram editadas para facilitar a visualização neste blog.
Veja também:
- Celebrando a Paixão e a Páscoa
- Celebrar para não esquecer
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- Ainda sobre a Semana Santa de 1822 em São Paulo: o que vestiam as mulheres nas igrejas
- Doces sabores da Páscoa e da gramática
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