Para o leitor habitual de História & Outras Histórias, esta postagem será um complemento à anterior, na qual tratou-se da questão de como se alimentavam os escravos que trabalhavam em engenhos de cana-de-açúcar no Brasil Colonial.
À parte dos desmandos praticados por muitos senhores quando se tratava de cuidar da subsistência de seus escravos, há algumas referências bem interessantes que mostram o modo pelo qual as características das atividades econômicas regionalmente predominantes influenciavam a alimentação habitual que era fornecida aos cativos. É isso que veremos a seguir.
a) Alimentação dos escravos em áreas de pecuária no Nordeste
Neste trechinho que é parte da obra publicada por Antonil em 1711, somos informados de que era usual, nas áreas de pecuária de corte do Nordeste brasileiro, que sobras de carne fossem destinadas aos escravos:
"... comumente os negros, que são um número muito grande nas cidades, vivem de fressuras, bofes, e tripas, sangue e mais fato das reses." (¹)
b) Alimentação dos escravos no Sul do Brasil
Curiosamente, um fenômeno semelhante ao anterior ocorria no extremo sul do Brasil, já no início da segunda década do século XIX, conforme se depreende deste relato feito por Auguste de Saint-Hilaire, embora a abundância de carne fizesse, quase sempre, que não apenas as sobras ficassem com os escravos:
"Pernoitei numa estância, cujo proprietário estava ausente, e onde só encontrei um negro. Esse homem alimentava-se apenas de carne, sem farinha e sem pão, como sucede a todos os escravos nesta região." (²)
c) Alimentação dos escravos em área do Sudeste
Finalmente, no Sudeste, área em que o café começava a afirmar-se como cultura de importância econômica em termos de exportação, os cultivos habituais de subsistência eram também destinados ao consumo dos escravos, ainda de acordo com Saint-Hilaire, que escreveu, em data próxima à da Independência, ao encontrar em um rancho de tropeiros um grupo de escravos que iam à fazenda onde deviam trabalhar:
"No rancho ainda permanecia um lote de negros e negras novos que um feitor conduzia a uma fazenda vizinha de Resende.
[...] Ontem ao anoitecer estenderam esteiras no chão e deitaram-se uns ao lado dos outros, envoltos em cobertores. Essa manhã receberam todos uma ração de feijão com farinha, cozida com carne-seca." (³)
Cabe aqui explicar que a farinha, provavelmente, era a de mandioca, embora farinha de milho também fosse bastante consumida; "negros novos" era como se usava denominar aos africanos recém-trazidos da África, e que não eram, portanto, "experientes" nas agruras da escravidão. Esses, que Saint-Hilaire encontrou, iriam, em pouco tempo, estrear no cenário da maior desgraça que já ocorreu ao Brasil.
Escravos recém-trazidos da África (conhecidos, na época, como "negros novos"), de acordo com M. Rugendas (⁴) |
(1) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, pp. 187 e 188.
(2) SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 138.
(3) Idem. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 125.
(4) O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
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