quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Escravos carregadores de sacas de café cantavam enquanto trabalhavam

Quem vivia no Rio de Janeiro em princípios do Século XIX podia querer ter um cafeeiro que produzisse para o consumo da família. Quem sabe, poderia até cultivá-lo no jardim, como planta decorativa. Pouco a pouco, os cafeeiros passaram às propriedades agrícolas e, ao longo do Século XIX ganharam enorme importância econômica para o Brasil.
Para que tanto café? Para exportação, certamente. Para países da Europa e, mais tarde, também para os Estados Unidos.
Antes da existência de ferrovias, o café era transportado até os portos por tropas de mulas. Sim! E, uma vez na área litorânea, era, até o local de embarque, carregado por escravos.
Daniel P. Kidder foi um pastor e missionário metodista que viveu no Rio de Janeiro, então capital do Império do Brasil, entre 1837 e 1840, os anos finais do chamado Período Regencial. Nesse tempo os escravos eram numerosos e nenhuma das grandes leis abolicionistas havia sido promulgada. Para um estrangeiro, mesmo vindo dos Estados Unidos, onde a escravidão também existia, havia muita coisa curiosa a observar - e Daniel P. Kidder era um observador benevolente, que chegou a apreciar muito do que via no Brasil, embora, por suposto, ficasse chocado com alguns costumes.
Foi assim que descreveu o trabalho dos escravos que carregavam as sacas de café:
"Os carregadores de café andam sempre geralmente em magotes de dez ou vinte negros sob a direção de um que se intitula capitão.
São em geral os latagões mais robustos dentre os africanos. Quando em serviço, raramente usam outra peça de roupa além de um calçãozinho curto; põem de lado a camisa, para não incomodar. Cada um leva na cabeça uma saca de café pesando cento e duas libras e, quando todos estão prontos, partem num trote cadenciado que logo se transforma em carreira." (¹)
Ora, Kidder notou que, para aliviar a fadiga e monotonia do trabalho, os escravos tinham o hábito de... cantar:
"Sendo suficiente apenas uma das mãos para equilibrar o saco, muitos deles levam, na outra, instrumentos parecidos com chocalhos de criança, que sacodem marcando o ritmo de alguma canção selvagem [sic] de suas pátrias distantes. A música tem, em elevado grau, a faculdade de espairecer o espírito dos negros, e, naturalmente que ninguém lhes pretenderia negar o direito de suavizar sua dura sorte cantando essas toadas que lhes são tão caras quão desagradáveis aos ouvidos dos outros." (²)
"Ninguém lhes pretenderia negar o direito"? Bem, é o próprio Daniel P. Kidder quem explica que até houve quem tentasse barrar a cantoria, mas considerações de ordem econômica acabaram trazendo a música de volta:
"Consta que certa vez se pretendeu proibir que os negros cantassem, para não perturbar o sossego público. Diminuiu, porém, de tal forma a sua capacidade de trabalho que a medida foi logo suspensa." (³)


Escravos carregadores de sacas de café no Rio de Janeiro (⁴)

Mais tarde, as ferrovias substituiriam, gradualmente, as tropas de muares, na tarefa de transportar o café das fazendas aos portos. O trabalho dos carregadores, porém, teria vida longa. Muito depois dos terríveis dias da escravidão, era à força de músculos que sacas de café (e de outras mercadorias) continuariam a ser conduzidas para embarque.


(1) KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 64.
(2) Ibid.
(3) Ibid.
(4) ___________ Brasilian Souvenir. Rio de Janeiro: Ludwig & Briggs, 1845. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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2 comentários:

  1. Que interessante. Há dias, a Calu (do Fractais da Calu) publicou um texto sobre um trabalhador que consertava qualquer coisa numa rua e fazia um espectáculo musical completo, para acompanhar a labuta. O mesmo acontecia nos principais trabalhos agrícolas em Portugal: a restolhada do milho, as vindimas, a ceifa, etc, etc. A música eleva mesmo os espíritos.
    Esse pastor dizia que as músicas selvagens eram desagradáveis para quem as ouvia mas, não muito tempo depois, a sua pátria foi completamente assolada por música de inspiração negra. E ainda bem!
    Beijinhos
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    1. Pode ser que tenha achado a música desagradável por preconceito, mas pode ser, também, que apenas considerasse incômodo o canto repetitivo. É difícil estabelecer um julgamento. No entanto, ele vivia em uma época em que a diversidade cultural não era muito valorizada. Hoje, pelo menos, gente civilizada aprecia boa música, independente da origem.
      A música desenvolvida pelos escravos nos Estados Unidos é mesmo belíssima, em seus variados estilos e usos.
      Se procurarmos, veremos que quase não há povo ou cultura que deixasse de ter suas canções para marcar o ritmo do trabalho, tornando, quem sabe, mais leves as tarefas. Acho que ainda tem esse efeito, porque quando estou digitando, assobio mentalmente uma musiquinha, para dar um certo ritmo ao meu texto...

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