sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Como os tupinambás festejavam a volta de alguém que fizera uma viagem

Culturas diferentes têm diferentes respostas a situações semelhantes. Verdade, leitores? 
Vejamos. Vários autores dos dois primeiros séculos de colonização do Brasil referiram que indígenas, em particular os tupinambás, tinham um modo muito estranho de recepcionar uma pessoa que, em razão de uma viagem, estivera ausente por longo tempo. Gabriel Soares, em seu Tratado Descritivo do Brasil em 1587, foi um dos que descreveram o tal hábito:
"Costumam os tupinambás que vindo qualquer deles de fora, em entrando pela porta, se vai logo deitar na sua rede, ao qual se vai logo uma velha ou velhas, e põem-se em cócoras diante dele a chorá-lo em altas vozes, em o qual pranto lhe dizem as saudades que dele tinham com sua ausência, os trabalhos que uns e outros passaram, a que os machos lhes respondem chorando em altas vozes, e sem pronunciarem nada, até que se enfadam, e mandam às velhas que se calem, ao que estas obedecem." (¹)
Ora, leitores, para a mentalidade ocidental do Século XXI essa recepção que faziam os tupinambás parece um absurdo - se estavam felizes pelo regresso do amigo, por que é que choravam? É bastante provável que quisessem reforçar a coesão de seu grupo, mostrando quanto era preferível estar em casa, entre parentes e amigos, a viver longe, em outras terras.
Mas não era só. A choradeira era ainda maior, no caso de um recém-chegado que percorrera grande distância:
"Se o chorado vem de longe, o vêm chorar desta maneira todas as fêmeas mulheres daquela casa, e as parentes, que vivem nas outras, e como acabam de chorar, lhe dão as boas-vindas, e trazem-lhe de comer, em um alguidar, peixe, carne e farinha, tudo junto posto no chão, o que ele assim deitado come; e como acaba de comer lhe vêm dar as boas-vindas todos os da aldeia um a um, e lhe perguntam como lhe foi pelas partes por onde andou [...]." (²)
Podemos considerar que, quanto ao hábito de oferecer alimento para quem retornava de uma viagem, talvez houvesse uma intersecção cultural entre colonizadores europeus e tupinambás. Mas parava aí. O pranto dos índios parecia estranhíssimo aos portugueses, para quem o choro incontido quase sempre expressava tristeza, e não alegria. Engraçado, mesmo, é que nem colonizadores escapavam, eventualmente, de tão ruidosa celebração. Quando europeus e ameríndios andavam em bom relacionamento e o escambo prosperava, não era raro que a chegada dos "comerciantes", com seus espelhos, pentes, ferramentas e adornos baratos, fosse também homenageada com muitas lágrimas, para dizer o quanto a vida era ruim antes que eles viessem. Pensem nisso, leitores, da próxima vez que encontrarem amigos ou parentes que não veem há muito tempo...

(1) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 323.
(2) Ibid., pp. 323 e 324.


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