quinta-feira, 25 de abril de 2019

Assim agiam os bandeirantes

À testa de uma bandeira, Fernão Dias fez enforcar um filho acusado de conspirar contra sua liderança


A tropa, que saíra tão animada, sertão afora, andava já descontente com o chefe. Experiente e poderoso - até havia recebido cartas do rei -, ele não tivera dificuldade em reunir um bando considerável para procurar ouro e pedras preciosas. Mas o tempo passava e a esperança de riqueza para todos ia minguando. Famintos, às vezes beirando a inanição, e com as roupas já pouco melhores que trapos, os homens lutavam contra o desespero. E nada de o teimoso líder resolver-se a voltar para casa. Adiante, adiante, sempre adiante. Para onde, afinal?
Em silêncio, olhares insatisfeitos achavam cúmplices. A conspiração tomava forma.
Não é por acaso que se diz que paredes têm ouvidos e mato tem olhos. Ora, mato é que não faltava naquelas paragens. Do fundo de sua obsessão por esmeraldas, o chefe farejou a revolta em andamento, e uma investigação mostrou quem estava à testa dos rebeldes. Um enforcamento silenciou aquele que ousara contestar o obstinado comandante. Era ninguém menos que um filho que havia gerado fora dos limites do casamento (¹).
Não, leitores, isto não é uma página de ficção histórica. Está na Nobiliarchia Paulistana, escrita no Século XVIII por Pedro Taques de Almeida Paes Leme, ao tratar da bandeira de Fernão Dias Paes (²), famoso pela procura de esmeraldas:
"Enquanto [...] penetravam os sertões [...] se introduziu uma diabólica sugestão contra a vida do governador Fernão Dias [...]. Foi autor deste sacrílego e bárbaro atentado o mameluco José Paes, filho bastardo dos delírios da mocidade [sic!] do governador Fernão Dias, que por muitas vezes pôs em desconfianças de que o seu amor excedia para com este bastardo aos grandes merecimentos de seu legítimo filho e primogênito Garcia Rodrigues Paes, que com os brios do sangue que lhe animava as veias sabia constante sofrer as calamidades e misérias do sertão para acompanhar nele [...] a seu pai. [...]"
Tenham paciência com a linguagem do Século XVIII, leitores, e passemos adiante. Depois de explicar que uma delação levara Fernão Dias ao conhecimento da conspirata, prossegue Pedro Taques:
"[Fernão Dias] prontamente se armou, e sem mais companhia veio examinar as vozes dos agressores, que ainda existiam no seu ajuntamento; retirou-se para logo, e com as cautelas e silêncio que pedia o caso, passou o restante da noite. Amanheceu o dia, e comunicando a gravidade da matéria a seu filho legítimo e mais oficiais parentes e amigos, procedeu na prisão dos culpados, que fazendo-os separar uns dos outros, se averiguou a verdade da capital culpa, que toda recaiu no filho mameluco; porém como o caso pedia um exemplar castigo para evitar outra futura ruína, negou-se ao amor e piedade de pai, e todo cheio de reta justiça, fez levantar o réu ao alto, e depois de confessado (³) e desenganado de que não escapava, o fez enforcar à vista de todo o arraial, com horror e temor dos mais companheiros."
Duas pequenas observações, e com elas vamos concluir:
  • Pedro Taques parece falar do "mameluco José Paes" em um tom pouco favorável (⁴), o que não deixa de ser curioso, já que a maior parte da população de São Paulo nesse tempo era mestiça - havia na terra poucas mulheres de origem portuguesa e, sendo assim, era com índias cristãs que muitos colonizadores se casavam (⁵);
  • Mesmo que o cabeça da rebelião fosse Garcia Rodrigues Paes, o primogênito legítimo de Fernão Dias, e não o filho mameluco, é provável que, sem qualquer demonstração de misericórdia, também fosse enforcado. Era assim que agiam os bandeirantes, era assim que se fazia justiça nas bandeiras que iam ao sertão.

(1) Filho natural era chamado aquele que nascera fora dos limites do casamento devidamente reconhecido pela Igreja. Na época, a distinção entre "filhos legítimos" (provenientes de um casamento formal) e "filhos naturais" era frequente em documentos, devido a uma série de implicações legais.
(2) 1608 - 1681.
(3) Admitindo que os fatos tenham sido exatamente como descritos por Pedro Taques, fica evidente que a bandeira de Fernão Dias contava com pelo menos um capelão.
(4) Quem lê a Nobiliarchia logo vê que Pedro Taques tinha a intenção de enfatizar a nobreza e "limpeza de sangue" da gente de São Paulo, com suas implicações civis e eclesiásticas, ainda que para isso fosse preciso fechar os olhos para o processo de mestiçagem em curso.
(5) A influência ameríndia era tão acentuada que, por séculos, a língua indígena é que foi falada em São Paulo no âmbito doméstico.


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