sexta-feira, 30 de agosto de 2024

O juízo final na versão dos antigos egípcios

Caricatura egípcia de uma alma condenada no julgamento dos deuses (*)

Que os egípcios criam em um tipo de vida após a morte é coisa que todo mundo sabe. Mas é preciso saber, também, que essa vida não era automática, nem bastava, para alcançá-la, ter o corpo devidamente mumificado, embora essa fosse uma prática muito importante. Havia um julgamento, quando o morto deveria ter seu coração pesado em comparação com a "pena da verdade". Mais ainda: esse julgamento era feito individualmente, diante do deus Osíris
É certo que ao morto era dada a oportunidade de defesa. Mas que dizer, então? Havia uma fórmula que se considerava apropriada, e que todo egípcio devia saber muito bem, para ser capaz de repetir no momento exato. Essa fórmula nos mostra, afinal, quais eram os valores morais e éticos que os egípcios da Antiguidade mais prezavam, e dizia, entre outras coisas:
"Nunca proferi mentiras, não causei tristeza a ninguém, não fiz negócios astutos ou desonestos, nunca provoquei brigas, jamais falei mal de alguém, meus ouvidos somente atentaram para o que era justo e verdadeiro, dei pão ao faminto e água ao sedento, dei roupa ao que nada tinha e uma embarcação ao marinheiro que naufragava, fiz apenas o que era puro e justo e fui um servidor fiel dos deuses."
Conclusão óbvia: ou os deuses não eram muito espertos, ou, para os antigos egípcios, mentir no juízo final não era um obstáculo à eternidade.  

(*) Cf. PARTON, James. Caricature and Other Comic Art. New York: Harper & Brothers, 1877, p. 33. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 


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quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Primeira pregação cristã no Brasil

Embora Pero Vaz de Caminha, o autor da "Carta do Achamento", não dê muitos detalhes, até onde se sabe a primeira pregação cristã em território brasileiro ocorreu no contexto da celebração da primeira missa. Ouviram-na os navegadores portugueses e, ao que parece, também indígenas, que, por não compreenderem o idioma, também não deviam fazer a menor ideia quanto ao sentido daquilo que presenciavam. "Ao domingo da Pascoela (¹) pela manhã", escreveu Caminha, "determinou o capitão (²) ir ouvir missa e sermão naquele ilhéu (³), e dentro levantar um altar mui bem arranjado. E ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual disse o padre frei Henrique (⁴), em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes que todos assistiram, a qual missa, segundo meu parecer, foi por todos ouvida com muito prazer e devoção".
Depois disso é que veio aquela que se considera a primeira pregação cristã em terra do Brasil, inaugurando um costume que seria muito praticado, já que, por muito tempo, ouvir sermões foi coisa que atraía multidões às igrejas, particularmente quando o pregador era pessoa conhecida pelos dotes de oratória. Mas voltemos à pregação de frei Henrique de Coimbra, descrita por Pero Vaz de Caminha e ouvida ao som das ondas que batiam na praia:
"Acabada a missa, [...] o padre [...] subiu a uma cadeira alta, e nós todos lançados por essa areia, e pregou uma solene e proveitosa pregação da história evangélica, e no fim tratou da nossa vida e do achamento desta terra, referindo-se à cruz, sob cuja obediência viemos, que veio muito a propósito e fez muita devoção." 
Quanto aos indígenas, observavam tudo e, ao que parece, celebraram a seu modo, porque Pero Vaz de Caminha referiu que "enquanto assistimos à missa e ao sermão, estava na praia outra tanta gente [...] com seus arcos e setas, e andava folgando. E olhando-nos, sentaram-se, e depois de acabada a missa quando nós, sentados, atendíamos à pregação, levantaram-se muitos deles e tangeram corno ou buzina e começaram a saltar e dançar [...]". O que indígenas não sabiam é que portugueses, ao realizarem a cerimônia religiosa, estavam executando uma parte do processo de tomar posse da terra que se "achara". O choque cultural, com todas as suas consequências, estava apenas começando, embora, naquele momento, parecesse ser apenas um contato amistoso.

(1) 26 de abril de 1500.
(2) Referência a Pedro Álvares Cabral. 
(3) "Ilhéu" era o que imaginavam os navegadores quanto ao lugar a que haviam chegado, e que, por isso, estavam chamando de Ilha de Vera Cruz. Mas era o Brasil, claro. 
(4) Tratava-se de frei Henrique de Coimbra, franciscano. 


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segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Por que especiarias do Oriente deveriam ser cultivadas no Brasil

Houve tempo em que o governo português proibiu a exportação para o Reino de especiarias do Oriente que fossem cultivadas no Brasil. O próprio cultivo chegou a ser (inutilmente) proibido. Para não prejudicar os interesses dos que investiam na navegação para as "Índias", era mais fácil proibir, ou fazer constar que era proibido. 
Passaram-se os anos e as conquistas lusitanas no Oriente foram minguando. Havia mais gente na Europa interessada nesse negócio. É verdade, também, que no
Século XVII tanta especiaria chegava ao Reino, que os preços já não eram tão compensadores, até porque a viagem para trazê-las era muito longa. Que fazer?
O padre Antônio Vieira (¹) teve uma ideia, que contrariava as antigas ordens reais:
"[...] aconselhou a El-Rei mandasse passar ao Brasil as plantas do Oriente, porque se davam e produziam mui bem nas terras da América, onde já se viam árvores de canela e algumas de pimenta, e raiz de gengibre, trazidas da Ásia; e a continuar esta cultura, teríamos em mais vizinhas conquistas e próprio nosso, o que comprávamos por nossa voluntária inércia e pecados aos holandeses. [...]" (²)
Dissecando o argumento:
  • O Brasil era menos distante que as regiões produtoras do Oriente;
  • O Brasil ainda era terra de Portugal, e não seria preciso comprar especiarias de estrangeiros;
  • A maioria das ervas aromáticas e especiarias orientais produzia admiravelmente no Brasil.
Portanto, por que proibir?  Melhor seria deixar livre seu cultivo, para os da terra e para a exportação. Funcionou. O cultivo deu tão certo que algumas plantas se tornaram, até hoje, uma verdadeira praga - gengibre, por exemplo, que quem planta precisa viver arrancando, não seja o caso de andar pisando sobre tudo o que cresce sob a terra. 

(1) 1608 - 1697.
(2) BARROS, André de S. J. Vida do Apostólico Padre Antônio Vieira da Companhia de Jesus. Lisboa: Officina Sylviana, 1746, p. 644.


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sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Pecados nos engenhos

Apoiados na distância das autoridades e na posição econômica, senhores de engenho viam-se livres para fazer, muitas vezes, o que bem entendessem


Engenhos de açúcar estabelecidos no Brasil Colonial eram lugares que desfrutavam de uma grande autonomia, pelo menos sob a perspectiva dos senhores. Eram eles, o ápice da pirâmide socioeconômica, que decidiam como queriam viver. Ainda que não tivessem formalmente esse direito, exerciam um mando de vida e morte sobre todos os demais que moravam no engenho, fossem eles membros da própria família, trabalhadores assalariados ou escravos. 
Assim, mesmo a religião, fator de controle tão importante na época, não conseguia impedir deslizes éticos e morais, até porque, mesmo nos engenhos que dispunham de capela e padre para a celebração de missas e outras cerimônias, o salário do religioso era pago pelo senhor - quem poderia imaginar mordaça mais eficiente do que essa?
Entre 1583 e 1590, Cristóvão de Gouvêa, jesuíta, efetuou, em companhia de outros religiosos, uma "visitação" por várias localidades do Brasil, especialmente as que tinham colégios e missões da Companhia de Jesus. O relatório dessa viagem foi feito pelo padre Fernão Cardim, que notou, ao que parece com algum alívio, que os religiosos, quando era necessário buscar hospedagem em engenhos, eram acolhidos com muita deferência, o que não impedia a constatação de que, neles, a elite colonial se sentia livre para todos os pecados:
"Os encargos de consciência são muitos, os pecados que se cometem neles não têm conta; quase todos andam amancebados por causa das muitas ocasiões. Bem cheio de pecados vai esse doce (¹), porque tanto fazem: grande é a paciência de Deus, que tanto sofre." (²) 
O modo de lidar com esse fenômeno atendia, na época, pelo nome de Inquisição. Mas, como se sabe, as visitações do Santo Ofício dificilmente lançariam seus tentáculos tão longe. 

(1) Referência ao açúcar.
(2) CARDIM, Pe. Fernão, S. J. Narrativa Epistolar de Uma Viagem e Missão Jesuítica. Lisboa: Imprensa Nacional, 1847, p. 56.


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quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Deveres dos familiares do Santo Ofício pelo Regimento de 1774

Se por um lado, ser familiar do Santo Ofício era uma posição honrosa na sociedade, porque o cargo supunha uma reputação religiosa imaculada, por outro, não se pode dizer que ter um desses indivíduos por perto fosse coisa apreciada. 
De acordo com o Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal, Livro I, Título IX, de 1774, época em que a Inquisição perdia força em consequência da difusão de ideias iluministas, eram estas as características e obrigações dos familiares do Santo Ofício:
  • Deviam ser pessoas de boa situação financeira ("Terão fazenda, de que possam viver abastadamente");
  • Deviam atender com prontidão quando chamados ("Irão à Mesa do Santo Ofício com pontualidade, todas as vezes que a ela forem chamados pelos inquisidores");
  • Deviam ser obedientes às ordens recebidas ("Cumprirão tudo o que eles [os inquisidores] lhes ordenarem");
  • Deviam comparecer à celebração religiosa de São Pedro Mártir ("Na véspera e dia de S. Pedro Mártir se acharão na Inquisição de seu distrito para acompanharem o Tribunal, e assistirão na igreja em que se celebrar a festa do santo");
  • Deviam, em certas ocasiões, portar a vara que indicava a autoridade do seu cargo ("Quando os inquisidores lhes encarregarem alguma prisão, além de deverem observar o que se lhes declara no Regimento do Meirinho, [...] levarão vara, e com ela acompanharão os presos");
  • Finalmente, a função que os tornava verdadeiramente detestados, porquanto deviam delatar à Inquisição supostos casos de crimes contra a fé ("Se, nos lugares em que viverem, acontecer algum caso que lhes pareça ofensivo da nossa santa fé, ou se os penitenciados não cumprirem suas penitências, com toda a brevidade e segredo darão pessoalmente conta na Mesa do Santo Ofício, havendo-a no lugar de sua habitação, e não a havendo, darão conta ao comissário, e quando o não haja, avisarão por carta aos inquisidores [...]"). 

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segunda-feira, 19 de agosto de 2024

A Guarda Nacional no Império do Brasil

Detalhes de uniformes
da Guarda Nacional (¹)
A Guarda Nacional foi criada por lei de 18 de agosto de 1831 - no Período Regencial, portanto. Durou enquanto o Brasil foi Império e até o começo da terceira década do Século XX. Aqui trataremos apenas de sua existência no Império do Brasil.
Era formada pela elite rural e por profissionais urbanos, gente que se supunha leal ao governo e com quem se poderia contar em caso de alguma revolta, uma preocupação que não era descabida, uma vez que o Período Regencial caracterizou-se por rebeliões em vários pontos do Império. No entanto, a Guarda Nacional somente era posta em ação em casos de emergência. A despeito disso, considerava-se uma honra pertencer a ela, e sua oficialidade tinha orgulho em estar presente em eventos públicos. Tomem-se, como exemplo, as celebrações pelo aniversário do imperador D. Pedro II na cidade de São Paulo em 2 de dezembro de 1852, noticiadas no jornal Aurora Paulistana:
"O aniversário do nosso ínclito monarca foi no dia 2 do corrente brilhantemente solenizado com parada da Guarda Nacional, Te Deum e cortejo, a que assistiu um numeroso concurso de cidadãos. À noite teve lugar no palácio do governo um esplêndido baile dado pelo excelentíssimo presidente da Província. [...]" (²)
Quem se alistava e era admitido na Guarda Nacional não podia, simultaneamente, pertencer ao Exército. Curiosamente, essa pode ter sido uma prática de controle sobre militares, por ser a Guarda Nacional, na visão política da época, uma força a favor do Império, na eventualidade de alguma sublevação no Exército (³). 
Joaquim Floriano de Godoy, senador do Império, escreveu, sobre a Guarda Nacional na Província de São Paulo:
"Há mais a Guarda Nacional qualificada em força de 60 mil homens, dividida em comandos superiores por todas as comarcas da Província [de São Paulo].
O serviço, porém, da Guarda Nacional, só é feito em circunstâncias especiais.
[...]
Os comandantes superiores da Guarda Nacional, assim como os oficiais do estado-maior, comandantes de corpos, são de nomeação do governo imperial. Porém do posto de capitão para baixo são nomeados pelo presidente da Província." (⁴) 
Portanto, a nomeação de oficiais da Guarda Nacional era, em tese, uma garantia de que os escolhidos seriam pessoas de lealdade inquestionável à monarquia que governava o Brasil. Nesse cenário, foi uma força de participação importante em vários momentos, especialmente durante a chamada Guerra do Paraguai (1864 - 1870). 

(1) Cf. BARROSO, Gustavo (org.). Uniformes do Exército Brasileiro 1730 - 1922. Rio de Janeiro / Paris: 1922, p. 78. Desenhos de J. Washt Rodrigues. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 
(2) AURORA PAULISTANA, Ano II, nº 83, 7 de dezembro de 1852. Transcrito na ortografia atual.
(3) Incidentes ocorridos durante o Primeiro Reinado, envolvendo mercenários estrangeiros, deram motivo a preocupações e fizeram com que líderes políticos acreditassem que a possiblidade de uma revolta dessa natureza não era mera fantasia. 
(4) GODOY, Joaquim Floriano de. A Província de S. Paulo. Rio de Janeiro: Typ. do Diário do Rio de Janeiro, 1875, p. 84.


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sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Profissões em Roma

Segundo criam os antigos romanos, fora seu segundo rei, Numa Pompílio, quem instituíra as práticas da religião pública ou religião de Estado. Essa é uma ideia difícil de comprovar, como o é, também a de que o mesmo Numa Pompílio teria organizado as diferentes profissões ou ofícios que deviam existir em Roma. 
Verdade ou lenda, é interessante, porém, verificar quais eram essas ocupações, porque, com isso, pode-se descobrir alguma coisa sobre o grau de desenvolvimento urbano e econômico dos primeiros tempos de Roma, ainda que não quando e como supostamente ocorreram. Plutarco, em Vitae parallelae, afirmou:
"Numa [Pompílio] ordenou que houvesse ofício de pessoas capacitadas que ensinassem a escrever, que soubessem a arte da música e que pudessem ensinar a tocar todos os instrumentos musicais; ordenou, também, a existência de ourives, de construtores, de curtidores, de tintureiros, de carpinteiros, de oleiros, de sapateiros, bem como quem exercesse todos os demais ofícios necessários à cidade. [...]." (¹)
O mesmo rei teria sido, além disso, o organizador de cada ofício em uma espécie de associação que deveria zelar pelo exercício da respectiva profissão (²), além de realizar as cerimônias religiosas correspondentes, incluindo sacrifícios e outros ritos que servissem para invocar o favor dos deuses para o trabalho que faziam.

(1) PLUTARCO, Vitae parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias
(2) De modo análogo àquele que, mais tarde, ocorreria nas corporações de ofícios medievais. 


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quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Um frade, um cão e um gato

Cão e gato (¹)

Esta é uma daquelas lendas piedosas que circulavam no Brasil Colonial. Tratava-se de um frade franciscano que viveu no Espírito Santo, cujo nome era frei Pedro de Palácios. Isolado, no Monte da Senhora da Penha, tinha, contudo, dois companheiros, um cão e um gato. Mas como se arranjava o frade quando era preciso fazer alguma viagem? 
É aí que entra a narrativa simpática, até divertida, mas um tanto inverossímil. Foi contada por frei Antônio de Santa Maria Jaboatão (²), franciscano como frei Pedro:
"[...] Por companheiros mudos, mas fiéis, da sua solidão, [frei Pedro de Palácios] conservou por todo o tempo que ali viveu, um gato e um cachorrinho, e quando saía aos seus exercícios de esmola ou doutrina, tantos dias determinava estar ausente, quantos montinhos de farinha lhes deixava ali, e falando com eles, lhes dizia, apontando-lhes os montinhos de farinha: irmão Gato (assim o tratava, e mais ao companheiro), eu hei de estar tantos dias fora, aqui ficam estas rações para vós outros ambos, uma para cada dia, e esta última a haveis de comer depois que eu aqui chegar; e assim o fazia; e assim o depôs a testemunha André Gomes, que sendo rapaz, acompanhava o servo de Deus nas saídas que fazia à doutrina das missões e aldeias [...]." (³)
"Irmão Gato"... Isto recorda, por certo, o que se conta sobre o fundador da Ordem a que frei Pedro de Palácios pertencia, não é mesmo? 
É verdade que farinha de mandioca foi, em muitos lugares, o principal alimento nos tempos coloniais, mas alimento para pessoas, não para cães e gatos. Quem é que já viu algum bichano lambendo os beiços por farinha? Talvez só comessem se não tivessem outra coisa e, no limite da fome, tratassem de engolir a estranha ração. Mas é difícil de crer. Se fossem pratos de leite ou carne, talvez nada sobrasse de um dia para outro. 

(1) Cf. THE YEAR'S ART. New York, Harry C. Jones, 1893, p. 241 Óleo de J. H. Dolph, com o título de "Friends". A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 
(2) 1695 - 1779. Sua obra, Novo Orbe Serafico Brasilico, foi escrita em 1757. 
(3) JABOATÃO, Antônio de Santa Maria O.F.M. Novo Orbe Serafico Brasilico, ou Crônica dos Frades Menores da Província do Brasil, Primeira Parte, Volume II. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense, 1858, p.40.


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segunda-feira, 12 de agosto de 2024

A castidade das esmeraldas

Pedras preciosas eram desejadas por seu valor monetário e pelas propriedades terapêuticas ou mágicas que se imaginava que tivessem


No tempo em que os Diálogos das Grandezas do Brasil (¹) foram escritos - presume-se que no começo do Século XVII - espanhóis já haviam descoberto jazidas interessantes de minerais preciosos no Continente Americano. Portugueses, porém, não tinham, ainda, alcançado tal façanha, pelo menos na escala almejada. Teorias com pretensões científicas tentavam explicar por que havia tanta prata na Bolívia, mas não no Brasil, e até se faziam buscas em latitude semelhante... Em vão.
Quanto às pedras preciosas, a ansiedade por elas se explicava porque eram fáceis de transportar (e esconder), de tal modo que, nos Diálogos, Alviano afirma que muitos desejavam ter parte da fortuna pessoal em pedras, "por ser coisa que em qualquer parte, por pequena que seja, se pode esconder e salvar sem ser achada [...]" (²). O que pensaria El-Rei de tal ideia?
Na época, as pedras preciosas eram estimadas não só por seu valor monetário, mas também porque a elas se atribuíam propriedades terapêuticas, mágicas, até. Quanto à esmeralda, por exemplo, afirmava-se, segundo Brandônio, que "[...] se tem por verdadeiro que, se a pessoa que a trouxer cometer qualquer ato sensual, se quebra por si, tanto ama a castidade" (³). Brandônio, todavia, afirmava não ter muito interesse por negociar com pedras, porque podiam perder valor se alguma jazida expressiva fosse descoberta, e isso era coisa que ninguém podia prever. 

(1) Autoria atribuída, com razoável probabilidade, a Ambrósio Fernandes Brandão.
(2) BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das Grandezas do Brasil. Brasília: Edições do Senado Federal, 2010, p. 51.
(3) Ibid. 


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sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Ratos no cardápio

De que se alimentavam os marinheiros da primeira viagem de circum-navegação quando faltava comida a bordo


A primeira viagem conhecida de circum-navegação, empreendida por uma expedição espanhola composta por cinco navios, mas comandada, curiosamente, por Fernão de Magalhães, que era português, saiu de Sevilha em 10 de agosto de 1519, uma segunda-feira, e deixou Sanlúcar em 20 de setembro do mesmo ano (¹). Pode-se imaginar que os tripulantes talvez estivessem eufóricos, pela possibilidade de empreender uma viagem nunca antes realizada, na qual esperavam adquirir fama e muita riqueza. E quanto aos que ficavam? Podemos apenas supor o sentimento misto de orgulho e de tristeza, já que a possibilidade de uma separação definitiva de parentes e amigos era real. 
A viagem transcorreu dentro do previsto até que, já em 1520, tiveram de enfrentar o inverno extremo no sul do Continente Americano. É evidente que essa foi uma expedição de alto risco. Supunha-se a existência de um "mar austral", no qual haveria uma passagem para o "outro lado do mundo"; tiveram a sorte de, em meio às buscas, topar com a passagem à qual hoje chamamos Estreito de Magalhães, mas a distância, depois de deixar a costa da América do Sul, até chegar às "ilhas das especiarias", as Molucas, era consideravelmente maior do que a calculada pelo comandante, com base em escassas informações e cartas de marear que vira. Por isso, e pelas condições de navegação da época, tornou-se impossível obter suprimentos em quantidade e qualidade suficientes para tal navegação. 
Sabe-se que a saída do Estreito aconteceu em 28 de novembro de 1520. Estavam, agora, diante do oceano a que chamaram Pacífico, porque assim parecia. Aí tiveram pela frente nada menos que três meses e vinte dias sem provar qualquer alimento fresco, e desnecessário é dizer que o escorbuto grassava entre a marujada, fazendo a tripulação inicial, de mais de duzentos homens, ir-se, gradualmente, reduzindo. De acordo com Antonio Pigafetta, um italiano que, a bordo da embarcação em que estava Magalhães, escreveu um registro da viagem, era esta a situação quanto à comida, capaz de dar calafrios, até hoje, em quem lê:
"O biscoito que comíamos já não se parecia pão, mas um pó misturado com bichos [...] e que, por estar cheio de urina de rato, tinha um cheiro insuportável. [...] Chegamos ao extremo, para não morrer de fome, de comer pedaços do couro que recobria o mastro maior [...]. Este couro, devido à exposição à água [salgada], ao sol e ao vento, estava tão enrijecido que, antes de ser cozido e comido, devia ficar por quatro ou cinco dias na água do mar, para tornar-se mais macio." (²)
Não foi só. Finalmente, no dizer de Pigafetta, "nossa alimentação se reduziu à serragem de madeira, porque nem ratos, tão asquerosos, havia mais [...]."
Depois disso, encontraram ilhas, até então desconhecidas, e, assim, ao menos puderam trocar as mercadorias que traziam (³) por algum alimento. 
Não foi, contudo, o fim dos problemas. Magalhães, envolvendo-se em um conflito tribal entre ilhéus, morreu em decorrência de ferimentos recebidos em Cebu. Agora, a preocupação era: como voltar à Espanha? 
O comando recaiu em Sebastián Elcano, a quem, por estranho que pareça, Pigafetta não fez qualquer referência. Conseguiram chegar às Molucas, fizeram o comércio que esperavam, abarrotaram os dois navios que ainda tinham, mas, na hora da partida, perceberam que um deles não poderia viajar, tão avariado estava. Portanto, apenas o navio Victoria empreendeu a viagem de volta, levando cartas dos tripulantes que ficavam nas Molucas, à espera de uma oportunidade para retornar à terra de origem. Daí por diante, a viagem, como se esperava, foi dificílima. Não foram poucas as vezes em que marinheiros pensaram na possibilidade da permanência em qualquer lugar em que se pudesse viver, tal era o sofrimento no mar. 
Porém...
Após tantas desgraças, o Victoria chegou a Sanlúcar em 6 de setembro de 1522, um sábado, com apenas dezoito homens, entre os quais o senhor Pigafetta, a quem devemos tantas informações (⁴). Dois dias mais tarde estavam em Sevilha, onde um tiro de canhão, vindo do navio que à custa concluía a viagem, anunciou o fim de uma das mais loucas expedições já realizadas. 
O que terá acontecido nessa ocasião? Gente correndo ao porto, pedindo notícias de parentes e amigos, mulheres ou filhos chorando pelos que não haviam voltado, que eram quase todos... Sobreviventes tinham a oportunidade perfeita para contar o que haviam vivido, com o exagero que a distância permitia. Era a rotina a cada navio que retornava após uma longa viagem. 
Ao falar de animais exóticos vistos nas ilhas por onde andaram, Pigafetta teve o cuidado de mencionar terem visto "morcegos tão grandes quanto águias". Ora, mesmo admitindo que fossem como águias das espécies menores, essa história devia cheirar a fake news, pelo menos quanto ao tamanho do mamífero voador. Continuava Pigafetta: "a um matamos e comemos, e nos pareceu ter sabor de frango". Tiveram sorte, portanto, em não arranjar, no começo da terceira década do Século XVI, um problema do Século XXI.

(1) Lembrem-se, leitores, de que as datas são todas anteriores à introdução do Calendário Gregoriano.  
(2) Os trechos citados do Diário de Pigafetta foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) A intenção era chegar às "ilhas das especiarias" e lá comprar cravo e outros condimentos que pudessem ser revendidos com alto lucro na Europa. 
(4) E algumas desinformações. Seu diário está repleto de notícias fantasiosas sobre humanos gigantes e pigmeus, além de animais estranhíssimos, cuja existência jamais foi comprovada. 


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quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Crianças notáveis

"O menino é pai do homem", escreveu Machado de Assis. (¹). Será, mesmo? 
A maioria dos cronistas do passado não ousaria discordar, tal era, entre eles, a obsessão em encontrar, na infância de grandes personagens, acontecimentos que prenunciavam, para bem e/ou para mal, a suposta grandeza que viriam a manifestar quando adultos. Rômulo e Remo, todo mundo sabe, teriam sido amamentados por uma loba; tolice que seja, houve quem afirmasse que Ciro, rei da Pérsia, tivera uma cachorra como ama; da rainha Semíramis, da Mesopotâmia, dizia-se que fora alimentada por pombas, até que, sendo encontrada por um pastor, fora criada em sua família, e quanto a Gilgamés, o herói do famoso épico também da Mesopotâmia, teria sido jogado do alto de uma torre logo que nasceu, para que não cumprisse a profecia de que tomaria o trono de seu avô. Contudo, segundo a lenda, foi salvo por uma águia que o segurou firmemente antes que chegasse ao chão e, levado a um belo jardim, foi criado por um camponês (²). Oh!!!
Não só do sobrenatural se alimentavam os biógrafos. Buscava-se na infância dos grandes aqueles episódios não de todo impossíveis, que prenunciassem eventos futuros. Falando de Catilina, o da famosa conjuração, Salústio afirmou: "Lúcio Catilina, de nobre nascimento, era forte de alma e corpo, porém de índole má e depravada. Desde a adolescência gostava de brigas, assassinatos, pilhagens e discórdias civis" (³). Neste caso, a má índole juvenil seria explicação para a tentativa de tomada violenta do poder em Roma, subvertendo a autoridade senatorial. Numa Pompílio, o segundo dentre os reis lendários de Roma, teria nascido no mesmo dia da fundação da cidade (⁴), um claro indício da glória a que era destinado. Parece que ninguém se lembrou de que outros podem ter nascido no mesmo dia, mas nunca chegaram à realeza em Roma.
Bem mais perto de nós, no Século XVIII, o padre André de Barros, biógrafo de Antônio Vieira, jesuíta como ele, contou, procurando ilustrar as espertezas do menino que, quando homem feito, seria hábil no manejo das palavras, quer faladas, quer escritas:
"Nos tenros anos da puerícia [...] reluziam nele algumas vivezas, que como faíscas rebentavam de alguma interna mina de fogo e de luz. Vendo-o um cônego no adro daquela antiga sé lhe disse: De quem sois, meu menino? Respondeu-lhe: Sou de V. m. (⁵) pois me chama seu. Refere-se mais, que perguntando-lhe outra pessoa, donde era, lhe respondera: V. m não me conhece. Eu (tornou o curioso) conheço a metade do mundo. Pois eu, senhor (respondeu o menino), sou da outra metade. Esta a fama, que depois de tantos anos não pôde ser averiguada; mas ficou na memória dos homens, como aquele rastro de luz, que deixa a estrela, que vai correndo." (⁶)
Fatos, em alguns casos, lendas piedosas (ou nem tanto) em outros, narrativas encomendadas, exageradas e, eventualmente, muito bem-pagas, ocupavam o tempo e justificavam a existência nos palácios e templos de criaturas capazes de escrever - escribas e cronistas - e, por isso mesmo, responsáveis pelos registros que garantiram que a grandeza atribuída aos notáveis de seu tempo atravessasse os séculos e chegasse aos nossos dias. Para nossa diversão, é claro, conforme vocês acabaram de ver.

(1) ASSIS, Joaquim M. Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas.
(2) Chegam a ser desconcertantes as semelhanças, não na superfície, mas na essência, que podem ser encontradas nessas histórias. Não se pode descartar por completo um elemento de totemismo nos mitos, devido à presença de animais "protetores" que salvavam bebês humanos predestinados a grandes feitos.
(3) Catilinae coniuratio.  O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) Cf. PLUTARCO, Vitae parallelae
(5) V. m.: vossa mercê.
(6) BARROS, André de S. J. Vida do Apostólico Padre Antônio Vieira da Companhia de Jesus. Lisboa: Officina Sylviana, 1746, p. 5.


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segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Varíola na Guerra de Canudos

Agosto de 1897. A guerra contra Antônio Conselheiro e seus seguidores, que ficaria conhecida como Guerra de Canudos, começara no ano anterior e, desde então, sucessivas derrotas das forças governamentais faziam crescer a fama dos sertanejos que lutavam pelo líder místico, acreditando que, afinal, o arraial era imbatível. 
Entre as forças do Exército, a situação chegava, às vezes, a ser desesperadora. Além de todas as misérias, decorrentes da falta de suprimentos e de fardamento adequado à luta na caatinga, a tropa tinha de enfrentar, ainda, uma epidemia de varíola, relatada por Euclides da Cunha em Os Sertões:
"Neste comenos dizimava-a a varíola. Destacavam-se das suas fileiras, diariamente, dois ou três enfermos, volvendo para o hospital, em Monte Santo. Outros, estropiados, naquela repentina transição das ruas calçadas da capital federal para aquelas ásperas veredas, distanciavam-se, perdidos à retaguarda, confundindo-se com os feridos, que vinham em direção oposta."
As baixas, portanto, eram provenientes dos ferimentos recebidos em combate, do despreparo da tropa para a luta na caatinga e da varíola, doença infecciosa para a qual se conhecia a vacinação no Brasil desde fins do Século XVIII. 
Como admitir tal coisa? Se todos os soldados houvessem recebido a vacina previamente à viagem ao sertão, a calamidade não teria se manifestado. Sabe-se, porém, que o descuido nessa questão, aliado à ignorância de parte considerável da população quanto à utilidade da vacina, não se esgotou na Guerra de Canudos. Um episódio ainda mais grotesco, a chamada Revolta da Vacina, de novembro de 1904, mostraria, fora de qualquer dúvida, o quanto era ainda preciso fazer no Brasil em se tratando de saúde pública. 


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sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Púrpura romana

Tingidos com o pigmento extraído de moluscos que eram encontrados no Mediterrâneo, os tecidos de cor púrpura eram os mais amados e valorizados em Roma. Plínio, O Velho (¹), afirmou que a melhor púrpura vinha de Tiro (²), embora a de outras procedências não fosse de modo algum desprezada. Havia púrpura, por exemplo, que vinha da região da Lacônia. 
Ainda de conformidade com Plínio, Rômulo teria feito uso eventual de púrpura, mas não instituiu nenhuma regra quanto ao seu emprego; Túlio Hostílio, terceiro rei lendário de Roma e sucessor de Numa Pompílio, teria sido o primeiro a acrescentar uma faixa púrpura ao seu traje, e isso depois de haver derrotado os etruscos. 
Desde então, a púrpura passou a ser um sinal distintivo na toga usada pelos homens romanos. Servia, por exemplo, para distinguir a ordem senatorial da ordem equestre, para indicar que um adolescente era membro de uma família patrícia e, no caso dos generais vitoriosos honrados com um triunfo, a púrpura era bordada a ouro. Muito do que Roma chegou a ser, veio do espólio de guerra e da mão de obra dos vencidos escravizados. Para aqueles que lideravam as forças militares que garantiam a hegemonia romana, ouro e púrpura no vestuário eram a maior distinção que se podia prestar. 

(1) 23 d.C. - 79 d.C.
(2) Cf. PLÍNIO, o Velho. Naturalis historia, Livro IX.  


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