quinta-feira, 30 de maio de 2019

Pães de jatobá na Guerra do Paraguai



A alimentação típica de quase todas as culturas inclui algum tipo de pão. Variam os modos de preparo e, com eles, os ingredientes utilizados, que podem ser trigo, centeio, milho, cevada, aveia - a lista é quase infinita, admitindo fatores como disponibilidade, grau de desenvolvimento tecnológico e a criatividade dos padeiros. Foi assim na Antiguidade, continua a ser assim até hoje.
Contudo, leitores, em minha opinião, um dos mais inusitados ingredientes para panificação foi citado por Alfredo d'Escragnolle Taunay que, na condição de veterano da Guerra do Paraguai (¹), foi buscar nos arquivos da memória este relato, que revela o uso por soldados de nada menos que jatobá para fazer pães, quando a falta de suprimentos ameaçava a sobrevivência da tropa:
"Todo expedicionário de Mato Grosso tem obrigação de olhar com reconhecimento para essa árvore [o jatobá], pois foram seus frutos providencialmente de uma profusão espantosa, que durante muitos dias, exclusivamente sustentaram a coluna brasileira, quando ela, em maio e junho de 1866, achou-se, depois de chuvas extraordinárias, retida e ilhada no rio Negro, bem no meio dos pantanais que medeiam entre Coxim e Miranda.
Quando faltava a parca distribuição da simples ração de carne, metiam-se os soldados pelos cerrados inundados e de lá voltavam com sacos e sacos de vagens de jatobá. Da massa faziam bolos e pãezinhos, que, se não eram saborosos, pelo menos mitigavam a fome e impediam a morte à míngua. O abuso, porém, produziu logo obstruções e várias qualidades de moléstias." (²) 
Ainda hoje não é incomum o uso da polpa de jatobá na culinária regional do Centro-Oeste brasileiro, mas a questão, aqui, é que os soldados usavam a polpa das vagens de jatobá para preparar comida, não porque quisessem, mas porque não tinham outro recurso para sobreviver. Indiretamente, o relato de Taunay remete a um dos aspectos mais dramáticos da guerra que, no Brasil, é chamada "do Paraguai": a situação miserável enfrentada pelas tropas, devido à ineficiência na remessa de suprimentos.

(1) 1864 - 1870.
(2) TAUNAY, Alfredo d'Escragnolle. Goyaz.


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terça-feira, 28 de maio de 2019

Um templo na ilha de Tera em honra de Poseidon

A erupção vulcânica que arrasou a ilha de Tera (¹), no mar Egeu, foi acontecimento notável na Antiguidade, provocando debates até hoje. A fúria do vulcão, conforme disse Estrabão (²) em sua Geografia, teria durado quatro dias, fazendo com que o mar ao redor fervesse e as consequências fossem percebidas muito além do exíguo território insular em o fenômeno ocorrera. Há questionamentos quanto à data desse fato, mas, considerando as várias teorias correntes, não há risco exagerado de erro em se considerar algo entre 1600 e 1500 a.C. 
Voltando ao que disse Estrabão (³), assim que cessou a fúria vulcânica, os moradores da ilha de Rodes, que na época dominavam a região, teriam sido os primeiros que ousaram pisar em Tera. Corajosos? Pode ser, mas a explicação talvez estivesse além da coragem. Trataram logo de erguer em Tera um santuário em honra de Poseidon (⁴), o deus do mar e dos terremotos. Como sabem, leitores, na Antiguidade os fenômenos extremos da natureza, não sendo devidamente compreendidos, eram atribuídos à ira dos deuses. Portanto, o templo que Estrabão afirmou ter-se construído na ilha arrasada devia ter o propósito de acalmar o irritadiço Poseidon, evitando novos acessos de raiva Egeu afora - em Rodes, por exemplo...
Nossa fonte, Estrabão, viveu muito tempo depois da erupção em Tera, e não sabemos se a gente de Rodes, foi, de fato, construir um templo na ilha ainda fumegante. Contudo, a homenagem a Poseidon é perfeitamente admissível, tendo em vista as crenças daqueles dias. Na maioria das culturas, as várias divindades eram associadas a fenômenos da natureza, fossem eles desejáveis, como chuva e sol em proporções adequadas à agricultura, ou temidos, como inundações, secas, terremotos, ou como o vulcanismo, que fez desaparecer a população de Tera e, quem sabe, tenha dado origem à lenda de Atlântida.   

(1) Hoje chamada Santorini.
(2) Estrabão nasceu por volta de 63 a.C., muito tempo depois da famosa erupção em Tera. Portanto, só podia falar daquilo que ouvira contar pelos que haviam vivido antes dele. Apesar disso, suas considerações, neste caso, não são destituídas de sentido.
(3) Geografia, Livro I.
(4) Chamado Netuno pelos romanos. 


quinta-feira, 23 de maio de 2019

Moradores de São Paulo eram proibidos de ir a festas em aldeias indígenas

É certo que não se proíbe aquilo que ninguém faz. Então, vejamos: em 19 de janeiro de 1583, estando reunidos os vereadores e mais autoridades da vila de São Paulo, o procurador, segundo consta na ata dessa reunião (¹), requereu "que todo homem cristão branco, que não seja negro de fora, que se achar em aldeia de negros forros ou cativos, bebendo e bailando ao modo do dito gentio, que suas mercês (²) lhes mandassem e pusessem pregão (³) e pena contra os tais [...]". O que significa isso?
É preciso explicar que a proibição não estava relacionada a alguma aldeia de africanos, já que isso caracterizaria um quilombo a ser, com toda certeza, debelado. Por estranho que pareça ao leitor do Século XXI, a palavra "negros", aqui, faz referência a indígenas, uma vez que era usual, na época, que ameríndios fossem chamados assim por colonizadores. Ora, o tal intercâmbio festivo devia ser recorrente. Por que se proibia?
Podemos levantar algumas conjecturas, que não se excluem mutuamente, antes se complementam, sabendo de antemão que as "aldeias" a que se referiu o escrivão da Câmara poderiam ser tanto povoações de índios "administrados" (⁴), de índios sob a catequese de jesuítas ou mesmo daqueles que, fugindo ao controle dos colonizadores, viviam em suas próprias aldeias, a seu modo e sem a interferência direta dos brancos:
  • Talvez houvesse queixa dos missionários jesuítas, que, com farta razão, alegavam constantemente que o mau exemplo dos colonizadores era o maior entrave à catequese de indígenas;
  • Embriagados e entretidos com a dança, colonizadores poderiam revelar segredos que facilitariam um eventual ataque indígena à vila de São Paulo;
  • É possível que os "homens bons" (⁵) da vila presumissem que a amizade de brancos com índios poderia resultar na perda do controle sobre os moradores originais da terra;
  • Talvez a proposta de punir os que fossem às festas indígenas não passasse de mera formalidade, proibindo "de fachada" aquilo que não se tencionava deixar de fazer, apenas ostentando dar satisfação a eventuais queixas de missionários;
  • Finalmente, temos por dever garantir aos senhores vereadores e outras autoridades o direito à presunção da inocência - neste caso, pode ser que, de fato, estivessem preocupados com o dano que colonizadores poderiam fazer aos indígenas indo às suas festas. Improvável, porém...
É ideia popular que indígenas e colonizadores viviam em brigas constantes, que variavam apenas de intensidade. Todavia, a ata a que nos referimos prova que o relacionamento entre os antigos senhores da terra e os recém-chegados colonizadores nem sempre era caracterizado pela oposição. A verdade é que alguns colonizadores gostavam tanto do estilo de vida ameríndio que chegavam a viver com eles e/ou como eles, ainda que a Igreja, combatesse esse proceder, ao menos até onde seu braço alcançava. Brancos vindos do Reino se casavam com mulheres indígenas, falavam língua indígena dentro de casa, andavam pelo mato como indígenas, e seus filhos - os chamados mamelucos - não tinham dificuldades em viver com um pé em cada cultura. Assim se colonizou São Paulo e, por extensão, o Brasil.

(1) O trecho citado foi transcrito em ortografia atual, sendo acrescentadas as vírgulas indispensáveis à compreensão.
(2) As autoridades constituídas da vila.
(3) A advertência pública a toda a população da vila era feita usualmente aos domingos, na saída da missa.
(4) Assim eram chamados os índios escravizados que viviam em fazendas de particulares ao redor da vila de São Paulo.
(5) Era usual que assim fossem chamados os administradores de uma localidade nos tempos coloniais.


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terça-feira, 21 de maio de 2019

Cães que viajavam

Cães são companheiros dos humanos desde tempos remotos, tanto no nomadismo como na sedentarização. Foram, e às vezes ainda são, ocupados em tarefas árduas, como cuidar de rebanhos, proteger pessoas, colaborar em caçadas, puxar trenós e auxiliar forças policiais. Não é pouco, e, no desempenho de tantas ocupações, cães precisavam frequentemente viajar com seus humanos, o que significava, quase sempre, ir a pé, ou seja, com as próprias patas.
Na Antiguidade, os assírios, que amavam caçadas e eram notáveis artistas, deixaram registrada em relevos a participação de cães na vida diária, convivendo com um povo que levava a paixão pela guerra às últimas consequências. Não é surpresa, portanto, que cães fossem incluídos entre as forças de combate, como se infere por este relevo (¹), em que um soldado, portando lança, tem ao lado um cão em atitude ameaçadora:


Já nas duas imagens seguintes (²), vêm-se cães em perseguição a um jumento selvagem. São cenas de uma caçada:



Mas deixemos de lado os assírios e suas feras caninas. Vamos ao Rio de Janeiro do Século XIX, ainda nos dias do Império, e ali encontraremos cães que viajavam, não a pé, mas em navios. A informação vem do Almanaque Laemmert de 1852, em que se explicava que cães que viajavam em embarcações da Real Companhia de Paquetes de Vapor Entre Southampton, Brasil e Rio da Prata pagavam a oitava parte da passagem cobrada dos respectivos donos. Como é óbvio, os respectivos donos é que pagavam pelos cães. Nada mais justo, já que os humanos queriam ter a companhia, em viagem, de tão destacados amigos.

(1) LAYARD, Austen Henry. Nineveh and Babylon. London: John Murray, 1882, p. XXIII.
(2) Ibid., p. XXVII. As imagens foram editadas para facilitar a visualização neste blog.

quinta-feira, 16 de maio de 2019

Lei de talião entre indígenas

Quem vai à literatura brasileira do Século XIX, logo descobre que na fase que se convencionou chamar de Primeira Geração Romântica houve obras importantes com temática, ao menos na superfície, ligada às origens do Brasil, dentro do perfil de nação independente que se pretendia construir e para a qual havia muito trabalho historiográfico a ser feito. Inserido nesse contexto, Guarani, de José de Alencar, apresentou à modesta população alfabetizada com que o país contava um herói indígena, Peri, disposto aos maiores sacrifícios para proteger a bela Ceci, filha do colonizador Dom Antônio de Mariz. O lado curioso disso é que, ao mesmo tempo em que enaltece Peri (um goitacá), Alencar faz a mais horrenda descrição dos aimorés, que, no correr da obra, são postos como inimigos ferozes, prontos para atacar e destruir a residência-fortaleza em que vive a família de Ceci. O motivo para o ataque seria a vingança da morte de uma jovem aimoré, que o filho de Dom Antônio de Mariz, inadvertidamente, atingira com o uso de arma de fogo:
"Os selvagens haviam encontrado o corpo de sua filha e reconhecido o sinal da bala; por muito tempo procuraram debalde as pisadas dos caçadores, até que no dia seguinte a cavalgata que passava serviu-lhes de guia.
Toda a noite rondaram em torno da habitação, e nessa manhã, vendo sair as duas moças, resolveram vingar-se com a aplicação dessa lei de talião que era o único princípio de direito e justiça que reconheciam.
Tinham morto sua filha; era justo que matassem a filha do seu inimigo; vida por vida, lágrima por lágrima, desgraça por desgraça."
E então, meus leitores: isso é literatura ou história? Quanto ao conceito de uma lei de talião entre indígenas é literatura, mas é também história (¹). Sem a formalidade de tribunais e sem magistrados, povos indígenas do Brasil recorriam à lei de talião, segundo afirmaram vários autores dos tempos coloniais, para vingar a morte de um familiar e/ou membro da tribo, vendo em tal prática, ao mesmo tempo, um direito e uma obrigação. Em Histoire d'un Voyage Faict en la Terre du Brésil, Jean de Léry (²), que esteve no Brasil no Século XVI, relatou que a retribuição na exata medida da ofensa não se restringia a casos de morte, mas era aplicada até para ferimentos graves decorrentes de uma briga. Sim, não conheciam, formalmente, "olho por olho, dente por dente", mas, assumindo que Léry estava correto no que escreveu, adotavam esse princípio, ainda que não frequentemente, porque os desentendimentos entre indígenas de uma mesma aldeia eram pouco comuns. 
Dentre vários outros autores, frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, setecentista, também referiu a prática de talião, ao falar de indígenas aos quais chamou papanás:
"Além das comuns gentilidades com os demais, tinham [os papanás] uma mui cruel, era, que se algum índio destes matava a outro da mesma nação, eram obrigados os parentes do matador a entregá-lo sem repugnância aos parentes do morto, que logo o afogavam, e davam garrote, e enterravam, estando presentes uns e outros, fazendo todos neste ajuntamento grande pranto, mas comendo e bebendo por muitos dias, e assim ficavam todos amigos. E se o matador fugia, de sorte que o não podiam haver às mãos, lhe tomavam um filho ou filha, e se os não tinha, um irmão; e se nem este havia, entregavam pelo matador o parente mais chegado, ao qual não matavam, mas ficava por cativo do parente também mais chegado do morto. [...]" (³)
Sem testemunhos escritos dos próprios indígenas, apenas podemos conjecturar que a lei de talião, que não conheciam por esse nome, mas que reconheciam na prática, era corrente entre ameríndios do Brasil, se os autores dos dias coloniais estiverem corretos. Contudo, o fato de ser mencionada por vários escritores acrescenta certo peso à informação. Assumindo que este seja o caso, cumpre observar que, malgrado a aparência de crueldade, a retribuição na medida da ofensa tinha dupla função, ou seja, impedia, com uma punição que não ia além da proporção do crime, a sequência perpétua de rancores e vinganças à moda da Verona shakespeariana, e assegurava a manutenção da paz dentro da tribo. Não era pouco. Quanto ao Guarani, de Alencar, fez tanto sucesso que acabou virando ópera, Il Guarany, com música de Antônio Carlos Gomes sobre libreto de Antônio Scalvini.

(1) À literatura é dada licença no terreno ficcional; quanto à história, isso jamais deveria ocorrer
(2) Veio ao Brasil como um jovem artesão, para viver e trabalhar na chamada França Antártica. Posteriormente, retornou à Europa, onde, depois de estudar em Genebra, veio a ser pastor protestante.
(3) JABOATÃO, Antônio de Santa Maria O.F.M. Novo Orbe Serafico Brasilico, ou Crônica dos Frades Menores da Província do Brasil  Volume 1. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense, 1858, p. 22.


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terça-feira, 14 de maio de 2019

Trezentas cabeças de lobo

Com justiça ou sem ela, lobos são ícones da perversidade. O olhar lupino, sagaz e perscrutador, é mesmo feito para congelar o sangue dos mais valentes. Imagine-se, então, quando a ameaça vem, não de um lobo, apenas, mas de alcateias! 
A coisa é tão séria que, a cada inverno, um ou outro país acaba autorizando, mesmo em nossos dias, a caça restrita de lobos, seja porque atacam rebanhos, ou porque ameaçam povoações isoladas. Imagine-se o que seria, então, na Europa Medieval, com o povoamento menos denso, as dificuldades de comunicação e os caminhantes obrigados a se deslocarem, às vezes sob frio intenso, por rotas quase desertas, a não ser, talvez, pelos lobos famintos que perambulavam à espera de uma refeição.
Acham que estou exagerando, leitores? Posso provar que não. Aconteceu na segunda metade do Século X, quando Edgar I era rei da Inglaterra. Nessa época, inúmeras alcateias vagueavam pela Grã-Bretanha, constituindo-se em verdadeira ameaça à segurança da população. Foi aí que o rei teve uma ideia que, àquela altura dos acontecimentos, soou brilhante, ainda que, para nós, hoje, talvez pareça exageradamente antiecológica: determinou que o imposto anual a que os galeses estavam sujeitos fosse pago com trezentas cabeças de lobo. Querem saber o resultado? Em cerca de quatro anos o "problema dos lobos" desapareceu. Que governo eficiente!...


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quinta-feira, 9 de maio de 2019

Bicicletas faziam muito sucesso em fins do Século XIX

Aperfeiçoadas ao longo do Século XIX (¹), as bicicletas começaram a fazer muito sucesso desde que a elas foram adicionados pedais. Hoje eles podem parecer óbvios, mas os primeiros veículos de duas rodas não tinham esses acessórios. 
Pois bem, pelos fins do Século XIX as bicicletas eram moda no Brasil, tanto para passeio como para competições, que atraíam os mais arrojados. E, para que os interessados tivessem bicicletas, devia haver quem as vendesse. Vejam este anúncio, publicado no jornal carioca Semana Sportiva (²) em 1899: 


Notem, leitores, que o veículo era referido pelo nome em francês, uma mania do Brasil na época. Mais intrigante, porém, é o traje da dama ao lado da bicicleta: tenho dificuldade em imaginar como era possível pedalar com um vestido desses. É que no Brasil as roupas longas (e dispendiosas) ainda eram usuais, a despeito  do clima, que insistia em recomendar outra coisa. A influência americana nesse sentido demoraria um pouco a pegar (³).
Já este outro anúncio, publicado no mesmo jornal (²), oferecia não só serviços de manutenção para aqueles que tivessem bicyclettes (coisa necessária, reconheçamos), como alugava algumas por hora e por dia, solução conveniente para quem não pudesse ou não quisesse comprar uma delas: 



(2) SEMANA SPORTIVA, Ano X, nº 355, 14 de outubro de 1899. O original pertence à BNDigital; as imagens foram editadas para facilitar a visualização neste blog. 
(3) Mas pegou, principalmente a partir do advento do cinema. As modas lançadas por atores e atrizes logo passaram a ditar comportamentos, em lugar dos velhos costumes supostamente atrelados à moral e/ou à tradição, em detrimento da higiene e da saúde.


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terça-feira, 7 de maio de 2019

Três tipos de governo que Estrabão, um escritor grego da Antiguidade, reconhecia

Estrabão está entre aqueles autores da Antiguidade cujas obras em grande parte se perderam e, portanto, delas só conhecemos a existência através de citações. Foi assim com sua História, por exemplo. Que coisa triste! Mas sua Geografia sobreviveu, e é de um trechinho dela que hoje trataremos.
Antes porém, uma palavrinha sobre esse autor. De família grega abastada, viveu entre os Séculos I a.C. e I d.C. Estudou em Roma e viajou bastante, condição necessária, na época, para quem pretendia escrever seriamente sobre outros povos e culturas, descrevendo com propriedade o lugar em que viviam. Por ter visitado Alexandria e lá permanecido durante alguns anos, é certo que teve acesso à famosíssima biblioteca que lá havia, maior depósito do saber em seu tempo.
Ora, sua origem grega explica, por certo, a maneira como enxergava os governos (¹). Disse ele, referindo-se a quem mandava nos diferentes Estados: "[...] ao governo em alguns Estados damos o nome de monarquia ou realeza, em outros dizemos aristocracia. e a um terceiro [tipo], democracia." E, mais adiante: "Em um é lei o que o rei deseja, em outros a vontade da aristocracia predomina e, em outros, ainda, faz-se a vontade do povo." (²)
Simples e direto, apesar de não abrangente, Estrabão falava, neste caso, daquilo que sua experiência permitia interpretar, embora seja possível que, mesmo conhecendo outros tipos de governo, julgasse que, em última análise, fosse razoável agrupá-los sob um dos três que citou (³). Isso mostra que há coisas neste mundo que só podem ser devidamente compreendidas algum tempo depois que aconteceram. Então, leitores, já sabem por que é importante conhecer e investigar o passado?

(1) Para evitar qualquer confusão com a classificação das formas de governo usual na atualidade é que aqui falo em "tipos" e não em formas de governo.
(2) ESTRABÃO, Geografia, Livro I. Os trechos citados foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) Talvez fosse o caso, para exemplificar, da diarquia que vigorara em Esparta, ou da tirania, vivenciada, esporadicamente e ainda que contra a vontade da maioria, por algumas cidades-Estado da Grécia na Antiguidade. é provável que o tirano fosse visto como uma anomalia política, e não como um governante ideal.


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quinta-feira, 2 de maio de 2019

Uma forca junto ao rio Tamanduateí

Não havia, ao que parece, nenhum prisioneiro sentenciado à morte aguardando execução. Apesar disso, o procurador da Vila de São Paulo do Campo de Piratininga compareceu à sessão da Câmara em 27 de maio de 1587 com este requerimento, registrado na ata correspondente: "[...] requereu aos ditos oficiais (¹) mandassem levantar forca porque não havia, e os ditos oficiais responderam que assim o fariam, que se levantasse e pusesse logo com brevidade [...]." (²)
O objetivo de maior probabilidade para que se erguesse o lúgubre instrumento de suplício à vista de todos, além do aspecto legal, era que fosse um fator de dissuasão para a gente audaciosa que proliferava sobejamente na vila. Haveria, contudo, sub-reptícia intenção de amedrontar alguém em particular? É difícil saber, mas não deixa de ser intrigante que juízes e vereadores de São Paulo - "homens-bons" da Vila - tantas vezes reticentes no atendimento aos pedidos do procurador, ao menos neste caso tenham agido com rapidez, pelo que sê lê na ata de 30 de maio de 1587, apenas três dias, portanto, após a solicitação de que se erguesse uma forca: "[...] o procurador [...] Afonso Dias requereu a mim escrivão desse fé como a forca desta vila estava levantada fora da vila, junto do rio Tamanduateí, e dou fé, eu, escrivão, ser verdade estar levantada a dita forca, que eu a vi, hoje, dito dia, levantada [...]."
Por que teriam colocado a forca fora dos muros da vila? É certo que a localidade era, então, pequena, e é possível que não houvesse espaço dentro dos muros. Seria um modo de aterrorizar indígenas que viviam nas imediações? Talvez houvesse outros motivos... 
É bom lembrar, já concluindo, que a morte por enforcamento era, na legislação portuguesa daquele tempo, o método usual de execução na esfera secular (³). No âmbito eclesiástico, a Inquisição tinha, como regra geral, preferência por outro método, mas, até onde se sabe, seus representantes nunca tiveram ânimo de escalar o (literalmente) escabroso Caminho do Mar que conduzia a São Paulo (⁴). É provável, à luz do que se conhece sobre a conduta dos paulistas da época, que eventual tentativa dessa natureza resultasse (também literalmente) na precipitação do inquisidor e sua gente serra abaixo.

(1) Em 1587 foram juízes Afonso Sardinha e Antônio de Proença, sendo vereadores Antônio de Saiavedra e Manuel Fernandes. O procurador era Afonso Dias. 
(2) Os trechos citados das atas da Câmara de São Paulo foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo das vírgulas indispensáveis à sua compreensão.
(3) Em casos específicos, outros métodos eram aplicados.
(4) Ainda que missionários jesuítas, em desentendimentos nada incomuns com os "mamelucos de São Paulo", usassem ameaçá-los com as penas do Santo Ofício, uma vez que as do purgatório e do inferno já não eram recurso eficiente para intimidação.


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