Quem vai à literatura brasileira do Século XIX, logo descobre que na fase que se convencionou chamar de Primeira Geração Romântica houve obras importantes com temática, ao menos na superfície, ligada às origens do Brasil, dentro do perfil de nação independente que se pretendia construir e para a qual havia muito trabalho historiográfico a ser feito. Inserido nesse contexto, Guarani, de José de Alencar, apresentou à modesta população alfabetizada com que o país contava um herói indígena, Peri, disposto aos maiores sacrifícios para proteger a bela Ceci, filha do colonizador Dom Antônio de Mariz. O lado curioso disso é que, ao mesmo tempo em que enaltece Peri (um goitacá), Alencar faz a mais horrenda descrição dos aimorés, que, no correr da obra, são postos como inimigos ferozes, prontos para atacar e destruir a residência-fortaleza em que vive a família de Ceci. O motivo para o ataque seria a vingança da morte de uma jovem aimoré, que o filho de Dom Antônio de Mariz, inadvertidamente, atingira com o uso de arma de fogo:
"Os selvagens haviam encontrado o corpo de sua filha e reconhecido o sinal da bala; por muito tempo procuraram debalde as pisadas dos caçadores, até que no dia seguinte a cavalgata que passava serviu-lhes de guia.
Toda a noite rondaram em torno da habitação, e nessa manhã, vendo sair as duas moças, resolveram vingar-se com a aplicação dessa lei de talião que era o único princípio de direito e justiça que reconheciam.
Tinham morto sua filha; era justo que matassem a filha do seu inimigo; vida por vida, lágrima por lágrima, desgraça por desgraça."
E então, meus leitores: isso é literatura ou história? Quanto ao conceito de uma lei de talião entre indígenas é literatura, mas é também história (¹). Sem a formalidade de tribunais e sem magistrados, povos indígenas do Brasil recorriam à lei de talião, segundo afirmaram vários autores dos tempos coloniais, para vingar a morte de um familiar e/ou membro da tribo, vendo em tal prática, ao mesmo tempo, um direito e uma obrigação. Em Histoire d'un Voyage Faict en la Terre du Brésil, Jean de Léry (²), que esteve no Brasil no Século XVI, relatou que a retribuição na exata medida da ofensa não se restringia a casos de morte, mas era aplicada até para ferimentos graves decorrentes de uma briga. Sim, não conheciam, formalmente, "olho por olho, dente por dente", mas, assumindo que Léry estava correto no que escreveu, adotavam esse princípio, ainda que não frequentemente, porque os desentendimentos entre indígenas de uma mesma aldeia eram pouco comuns.
Dentre vários outros autores, frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, setecentista, também referiu a prática de talião, ao falar de indígenas aos quais chamou papanás:
"Além das comuns gentilidades com os demais, tinham [os papanás] uma mui cruel, era, que se algum índio destes matava a outro da mesma nação, eram obrigados os parentes do matador a entregá-lo sem repugnância aos parentes do morto, que logo o afogavam, e davam garrote, e enterravam, estando presentes uns e outros, fazendo todos neste ajuntamento grande pranto, mas comendo e bebendo por muitos dias, e assim ficavam todos amigos. E se o matador fugia, de sorte que o não podiam haver às mãos, lhe tomavam um filho ou filha, e se os não tinha, um irmão; e se nem este havia, entregavam pelo matador o parente mais chegado, ao qual não matavam, mas ficava por cativo do parente também mais chegado do morto. [...]" (³)
Sem testemunhos escritos dos próprios indígenas, apenas podemos conjecturar que a lei de talião, que não conheciam por esse nome, mas que reconheciam na prática, era corrente entre ameríndios do Brasil, se os autores dos dias coloniais estiverem corretos. Contudo, o fato de ser mencionada por vários escritores acrescenta certo peso à informação. Assumindo que este seja o caso, cumpre observar que, malgrado a aparência de crueldade, a retribuição na medida da ofensa tinha dupla função, ou seja, impedia, com uma punição que não ia além da proporção do crime, a sequência perpétua de rancores e vinganças à moda da Verona shakespeariana, e assegurava a manutenção da paz dentro da tribo. Não era pouco. Quanto ao Guarani, de Alencar, fez tanto sucesso que acabou virando ópera, Il Guarany, com música de Antônio Carlos Gomes sobre libreto de Antônio Scalvini.
(1) À literatura é dada licença no terreno ficcional; quanto à história, isso jamais deveria ocorrer.
(2) Veio ao Brasil como um jovem artesão, para viver e trabalhar na chamada França Antártica. Posteriormente, retornou à Europa, onde, depois de estudar em Genebra, veio a ser pastor protestante.
(3) JABOATÃO, Antônio de Santa Maria O.F.M. Novo Orbe Serafico Brasilico, ou Crônica dos Frades Menores da Província do Brasil Volume 1. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense, 1858, p. 22.
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