terça-feira, 31 de maio de 2011

Abastecimento de água - da Antiguidade aos tempos do Brasil Colonial

Nós que vivemos no século XXI nos esquecemos, por vezes, de quão difícil podia ser a vida diária das pessoas de outras épocas. Difícil, antes de mais nada, em questões básicas de sobrevivência, como era, por exemplo, o abastecimento de água.
Na Antiguidade - todos sabemos - muitas civilizações tiveram suas origens relacionadas a um determinado rio, de onde retiravam a água necessária à vida e com a qual também irrigavam os campos. Servia o rio, naturalmente, como via de transporte, quando as estradas eram praticamente inexistentes. Não que fosse impossível haver civilização sem um grande rio, mas, nesse caso, adaptações importantes eram necessárias, o que podia significar, talvez, a domesticação de animais que sobrevivem longo tempo com pouca água: camelos!
É verdade que algumas civilizações, como é o caso dos romanos, mas não exclusivamente, chegaram a desenvolver sistemas altamente complexos para trazer água, mesmo de longe, a fim de assegurar um suprimento contínuo e de boa qualidade. Entretanto, em caso de guerra, a maioria das cidades do passado preferia que sua fonte de água estivesse dentro dos muros, o que significa garantir o abastecimento interno, em caso de sítio, dificultando, por outro lado, a vida dos inimigos invasores.
Uma alternativa, que sempre permitiu ter água mais perto, era a construção de poços. Ainda assim, se o poço era de uso comunitário, era preciso ir buscar água usando grandes jarros, quase sempre de argila, o que significava um trabalho pesado (literalmente) e cansativo. De qualquer modo, os poços podiam ser indispensáveis e procurava-se mantê-los sempre nas melhores condições, já que a vida de comunidades inteiras chegava a depender deles. Não é à toa que, na Idade Média, quando as causas verdadeiras das epidemias eram desconhecidas, costumava-se supor que proviessem do envenenamento dos poços por gente com poderes malévolos. Aliás, uma das mais terríveis acusações que se podia fazer contra alguém era justamente a de que houvesse envenenado o poço ou fonte de que uma povoação se servia, acusação que quase sempre redundava em pena de morte.
Chafariz da Cidade de Goiás - GO
Muitas cidades coloniais brasileiras ainda preservam seus antigos chafarizes. Mesmo que não sejam mais necessários, são conservados pelo aspecto pitoresco que conferem a essas localidades, nas quais o turismo representa uma parcela importante das atividades econômicas. Quem os observa, logo se dá conta de um detalhe: eram (ou são) grandes, espaçosos... Por quê? Ora, por uma razão bem simples: neles a população se servia da água de que precisava, mas neles também bebiam cavalos e mulas, sempre sedentos ao final de suas jornadas, além, é claro, de outros animais. Não se deve esquecer que esses eram dias nos quais o transporte terrestre de mercadorias era feito nas costas dos animais de carga. Regras de higiene, como hoje as entendemos, determinando que homens e animais bebessem em locais distintos, eram ainda desconhecidas da maioria da população. Só mais tarde é que se recomendaria que porcos e galinhas não frequentassem as imediações.

Detalhe do chafariz da Cidade de Goiás, no qual se vê a data
de inauguração, 1778.

Veja também:

domingo, 29 de maio de 2011

Peixe-monge, peixe-bispo - exóticas "celebridades" do Renascimento

Cada época da trajetória humana neste planeta tem-se assinalado por um modo específico no relacionar-se com o conhecimento. Já houve tempo em que o saber, ao menos sob o aspecto formal, era reservado a uma camada social específica, como os sacerdotes ou escribas, por exemplo. Nesse modelo, tinha-se clara ideia de que conhecimento representava prestígio social (acompanhado, é certo, dos benefícios dele decorrentes) e, portanto, devia ser muito bem guardado, "a sete chaves", como se usa dizer, somente sendo transmitido aos membros do grupo devidamente iniciados. Basta um pouco de senso crítico para saber que essa mania não ficou restrita à Antiguidade.
Houve ocasiões, por outro lado, em que se considerou que tudo o que havia para ser descoberto já o fora anteriormente e, por isso, restava aos homens de ciência o empenho da preservação do saber, para que não se perdesse. Copiar, copiar, copiar - além de memorizar - era muito importante. Ainda que reconhecendo quão vital foi a preservação dos antigos livros assegurada por copistas, em tempos nos quais a imprensa era apenas um sonho, é de se comemorar que tal época tenha passado. Era preciso ir além.
O Renascimento é tido como um período no qual, ao lado de uma intensa busca pela compreensão dos mestres clássicos, desenvolveu-se um novo gosto pela investigação científica e, embora a palavra em si represente,para a maioria, sinônimo de artes plásticas (Da Vinci, Michelangelo, Boticelli...), deve-se compreender que o universo renascentista foi muito além. Desenvolveu-se a matemática, ganhou impulso a astronomia, a observação da natureza, alavancada pela admiração diante da descoberta de seres vivos até então desconhecidos no "Novo Mundo", ocupou muitos cérebros brilhantes. Tudo isso, ao lado da popularização da imprensa com tipos móveis tornou possível uma circulação do conhecimento como o mundo até então nunca havia presenciado, malgrado tentativas de restringir a divulgação de obras consideradas perigosas para o establishment.
Orca com filhote, segundo Bellonius
Vamos a uma exemplificação. Em 1553 foi publicado em Paris De aquatilibus, escrito por Pierre Belon, naturalista, também conhecido (como era usual entre renascentistas), como Petrus Bellonius Cenomanus. Nesse livro notável, escrito em latim e, portanto, destinado ao universo erudito da época, o autor procura apresentar uma sistematização dos seres vivos que vivem na água ou em suas imediações (como castor, hipopótamo, crocodilo, lagarto). Sendo a obra toda ilustrada, pode-se perceber como havia avançado o conhecimento. Veja-se, a título de elucidação, o caso dessa orca representada ao trazer um filhote ao mundo. Quanto progresso!
O "peixe-monge" de Bellonius
Pois bem, leitor, há mais a considerar. A despeito do expressivo volume de conhecimento bem organizado, muito do "saber" da época faria um ictiólogo da atualidade arrancar os cabelos de desespero. Quer ver? Embora o autor admita que muitos seres relatados pelos antigos não passavam de lenda, inclui entre os peixes listados nada menos que um peixe-monge... com direito a ilustração. Teria esse ser aparecido na costa da Noruega em meio a uma tempestade.
O "peixe-bispo", de acordo
com Rondelet
Mais ainda, Bellonius não foi o único a incorrer nessa "heresia". Um seu contemporâneo, também francês, Guillaume Rondelet, em L'Histoire Entiere des Poissons, de 1558, não só menciona o tal peixe-monge, mas vai além, citando também um peixe-bispo, que teria dado o ar da graça no litoral da Polônia em data incerta, talvez 1531, devidamente paramentado para celebrar missa. Desapareceu, é verdade, não sem antes cumprimentar membros do clero e abençoar a multidão que viera vê-lo. A mesma lorota sobre o peixe-bispo seria repetida por Fournier em Hydrographie (1643), afirmando-se, todavia, que o ano da aparição havia sido 1433.
Por mais que se tente encontrar um ser marinho que pudesse sugerir o "peixe-bispo", não há como negar a quantidade de imaginação e superstição cordialmente associadas para criar tal figura. Não nos enganemos. Estamos amarrados à época em que vivemos e pouco podemos fazer contra essa condição. Além disso, não devemos zombar dos erros da gente antiga. Só o tempo dirá de que coisas dos nossos dias hão de rir no futuro.


quinta-feira, 26 de maio de 2011

O trabalho das escravas nos engenhos de açúcar: Parte 5 - Conclusão

A fome me tem já mudo, 
que é muda a boca esfaimada,
mas se a frota não traz nada,
por que razão leva tudo?
que o povo por ser sisudo
largue o ouro, e largue a prata,
a uma frota patarata,
que entrando co'a vela cheia,
o lastro que traz de areia,
por lastro de açúcar troca!
          (Gregório de Matos)


O autor que serviu de base para nosso pequeno estudo, André João Antonil, enumerou em sua obra (¹) uma série de razões pelas quais resolveu escrever o que havia observado nos engenhos, mencionando, entre elas, "...para que os que não sabem o que custa a doçura do açúcar a quem o lavra, o conheçam, e sintam menos dar por ele o preço que vale...". E, ainda mais , referindo-se ao caldo obtido da cana no preparo do açúcar, disse: "...e desta sorte nem um só pingo se perde daquele doce licor, que bastante suor, sangue e lágrimas custa para se ajuntar." (²)
Saltava aos olhos dos observadores atentos que, sendo o açúcar a mais importante riqueza produzida no Brasil durante muitas décadas, havia por parte do governo metropolitano o máximo interesse em bem conservar a produção, no interesse da saúde financeira da Coroa.
Um dos que ousaram escancarar essa questão foi Frei Vicente do Salvador, contemporâneo da tentativa holandesa de ocupação da Bahia (1624), que relatou a preocupação do monarca reinante, Filipe III de Portugal (e IV de Espanha, em tempos da União Ibérica, que durou de 1580 a 1640), no sentido de retomar o controle da região:
"...mandou com muita brevidade aprestar suas armadas, e que entretanto se mandasse de Lisboa todo o socorro possível, não só à Bahia, mas às outras partes do Brasil, para que os rebeldes não tomassem pé no Estado, nem ainda o lançassem fora dos limites da cidade que tinham tomada, porque nisso podiam perigar as fazendas dos engenhos de açúcar que estão no Recôncavo, de que tanto proveito recebem as suas alfândegas."(³)
Não é necessário frisar o que se encontra nas últimas linhas. Quanto aos senhores de engenho, é verdade que, por esse tempo, constituíam a elite colonial, embora sua situação econômica nem sempre fosse das mais favoráveis, daí as palavras mais que explícitas de Gregório de Matos, no sentido de ressaltar o fato de que não era ao Brasil e à sua população que, em última instância, cabiam os maiores lucros do açúcar.
Embalado em caixas de madeira, o açúcar era conduzido aos portos, e daí, via Portugal, para outros lugares:
"E com isto temos levado o açúcar do canavial, aonde nasce, até os portos do Brasil, donde navega para Portugal, para se repartir por muitas cidades da Europa." (⁴)
Na primeira postagem desta série mencionei o fato de que muitas publicações de caráter didático trazem representações dos engenhos nas quais há apenas homens trabalhando. Se, ao final de nosso estudo, estiver bem claro o fato de que havia muitas escravas ocupadas em todo o processo de produção do açúcar, havendo etapas em que elas chegavam a ser a maioria, pode-se considerar que o objetivo foi alcançado.

(1) Cultura e Opulência do Brasil Por Suas Drogas e Minas.
(2) p. 69 da edição original de 1711.
(3) SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil.
(4) Cultura e Opulência..., p. 94.


Veja também:

terça-feira, 24 de maio de 2011

O trabalho das escravas nos engenhos de açúcar: Parte 4 - Na casa de purgar

"Casa de Purgar" era o nome dado ao lugar, em um engenho, no qual o açúcar, ainda pouco sólido, era trabalhado até secar completamente, em um lento processo de conduzia  ao branqueamento. Para isso, era colocado em formas de barro, constituindo os chamados "pães de açúcar". Sobre o próprio açúcar eram colocadas sucessivas camadas de argila, conforme relata Antonil, esclarecendo, também, como as escravas realizavam esse trabalho:
"Trabalham na casa de purgar quatro escravas, e são as que entaipam e botam barro nas formas do açúcar e lhe dão suas lavagens. No balcão de mascavar assistem duas negras das mais experimentadas, que chamam mães do balcão, e com outras o mascavam e apartam o inferior do melhor uns negros que trazem e aventam as formas, e tiram delas os pães de açúcar, e o amassador do barro de purgar, que é também outro negro.
No balcão de secar trabalham as mesmas duas mães com as suas companheiras, que são até dez, estendendo os toldos e quebrando com toletes as lascas e os torrões grandes em outros menores atrás dos quebradores dos pães. E na caixaria ajudam ao caixeiro no peso e encaixamento do açúcar as negras e negros que são necessários, como também no pilar, igualar, pregar e marcar." (¹)
"Cavam primeiro as quatro escravas purgadeiras com cavadores de ferro no meio da cara da forma (que é a parte superior) o açúcar já seco, e logo o tornam a igualar e entaipar muito bem com macetes; botam-lhe então o primeiro barro, tirando-o com um reminhol dos tachos, que vieram cheios dele do seu cocho, estando já amassado em sua conta, e com a palma da mão o estendem sobre toda a cara da forma, alto dois dedos. Ao segundo ou terceiro dia botam em riba do mesmo barro meio reminhol ou uma cuia e meia de água, e para que não caia no barro de pancada, e caindo faça covas no açúcar, recebem sobre a mão esquerda, chegada ao barro, a água, que botam com a direita igualmente sobre toda a superfície, e logo com a palma da mão direita mexem levemente o barro, de sorte que com os dedos não cheguem a bulir na cara do açúcar." (²)
Ao concluírem-se essas operações o açúcar era desenformado, separando-se o açúcar branco do mascavado:
"Ao pé do balcão, que chamam de mascavar, se aventam as formas sobre um couro, que vem a ser bulir nelas devagar com as bocas viradas para o dito couro, para que saiam bem os pães, os quais postos sucessivamente por um negro sobre um toldo, que está estendido neste balcão, por mão de uma negra (à qual chamam mãe do balcão), se lhes tira com um facão todo aquele açúcar mal purgado e de cor parda que têm na parte inferior, e isto se diz mascavar, e ao tal açúcar chamam depois mascavado. E, entretanto, outra sua companheira, que é das mais práticas, tira com um machadinho do mesmo mascavado o mais úmido, que chamam pé da forma ou cabucho, e este torna para a casa de purgar em outras formas, até acabar de se enxugar; e logo outras negras quebram com toletes os torrões do mascavado sobre um toldo, que também há de ir ao balcão de secar." (³)
A qualidade do açúcar dependia, em essência,  de quão corretamente era feito o trabalho na casa de purgar, ainda que outros fatores, como o clima, por exemplo, também tivessem sua influência, à medida que dias mais secos permitiam secagem rápida, ao contrário de dias chuvosos, que tornavam o processo mais lento. E, finalmente, quando os funcionários pagos, que supervisionavam todo o processo, entendiam que o açúcar estava "no ponto", chegava a hora de colocá-lo em caixas, preparando-o para exportação, no que, mais uma vez, os escravos, eles e elas, faziam grande parte do esforço.

(1) Cultura e Opulência do Brasil Por Suas Drogas e Minas, pp. 79 e 80 da edição original de 1711.
(2) Ibid., pp. 83 e 84.
(3) Ibid., p. 87.


Veja também:

sábado, 21 de maio de 2011

O trabalho das escravas nos engenhos de açúcar: Parte 3 - Na casa das fornalhas

A moenda de um engenho (conforme postagem anterior) era possivelmente o lugar mais perigoso que nele havia, mas não o mais parecido com a imagem popular do inferno. Esse posto era reservado à casa das fornalhas. É Antonil quem diz:
"Junto à casa da moenda, que chamam casa do engenho, segue-se a casa das fornalhas, bocas verdadeiramente tragadoras de matos, cárcere de fogo e fumo perpétuo, e viva imagem dos vulcões, Vesúvios e Etnas, e quase disse do purgatório ou do inferno." (¹)
Nesse lugar fantasmagórico, repleto de calor e fumaça em razão da queima permanente de madeira para alimentar as fornalhas, trabalhavam homens livres, pagos para tarefas especializadas, relacionadas a "dar o ponto" na calda que originaria o açúcar, além de um certo número de escravos, escolhidos deliberadamente entre os mais rebeldes que porventura houvesse no engenho, tal a natureza brutal da atividade a eles destinada. Eram esses escravos dentre aqueles que já haviam fugido, incitado rebeliões, ou se envolviam frequentemente em brigas, ou ainda atentavam contra feitores. Por essa razão, trabalhavam atados por pesadas correntes que, se não impediam os movimentos necessários às suas tarefas, tornavam a existência um suplício que, aliado ao ar pesado e infecto, só podia ser comparado ao inferno.
Aí, nesse antro de terror, trabalhava ao menos uma escrava, conhecida como "calcanha":
"Serve finalmente para varrer a casa e para concertar e acender as candeias (que são seis, e ardem com azeite de peixe) e para tirar as segundas e terceiras espumas do seu próprio parol e torná-las a botar na caldeira, uma escrava, a quem chamam por alcunha "a calcanha"." (²)
Seria ela também uma escrava "condenada" por algum ato de rebelião? Eventualmente poderia ser - ou não. Anônima, em meio a outros escravos, consumia-se também no amargo quotidiano produtor do doce açúcar - ironia que não passava despercebida nem mesmo naqueles dias.

(1) ANTONIL, A. J. Cultura e Opulência do Brasil Por Suas Drogas e Minas (página 59 da edição original de 1711).
(2) Ibid., pp. 65 e 66, também da edição de 1711.


Veja também:

quinta-feira, 19 de maio de 2011

O trabalho das escravas nos engenhos de açúcar: Parte 2 - Na moenda

Se, na lavoura canavieira, o trabalho podia ser dividido entre homens e mulheres, na etapa seguinte do processo de produção do açúcar, ou seja, a passagem da cana pela moenda, as escravas eram predominantes.
A moenda era, provavelmente, o lugar mais perigoso de um engenho, mas de um perigo real, presente a cada instante e não uma mera possibilidade remota. Sobre isso, escreveu Antonil (¹):
"O lugar de maior perigo que há no engenho é o da moenda, porque se por desgraça a escrava que mete a cana entre os eixos, ou por força do sono, ou por cansada, ou por qualquer outro descuido, meteu desatentamente a mão mais adiante do que devia, arrisca-se a passar moída entre os eixos, se lhe não cortarem logo a mão ou o braço apanhado, tendo para isso junto da moenda um facão, ou não forem tão ligeiros em fazer parar a moenda, divertindo com o pejador a água que fere os cubos da roda, de sorte que deem depressa a quem padece, de algum modo, o remédio. E este perigo é ainda maior no tempo da noite, em que se mói igualmente como de dia, posto que se revezem as que metem a cana por suas equipações, particularmente se as que andam nesta ocupação forem boçais, ou acostumadas a se emborracharem. (²)  
Observe, leitor atento, expressões como "arrisca-se a passar moída entre os eixos", e "tendo para isso junto da moenda um facão" - são coisas que provocam horror ao simples pensamento. E nosso jesuíta escritor segue acrescentando uma razão a mais, além do perigo inerente ao funcionamento do maquinário, para os terríveis acidentes: na época da moagem da cana os engenhos funcionavam dia e noite, ininterruptamente, para dar cabo da tarefa de moer a própria cana e a de lavradores das redondezas, em tempo de obter dela o melhor rendimento em termos de produção de açúcar, quantitativa e qualitativamente falando.
Apenas para que se tenha uma ideia do que deveras ocorria a quem, por infelicidade ficasse preso entre os eixos da moenda, cito aqui um caso real da segunda metade do século XIX, também ocorrido em engenho, mas já com o uso de máquina a vapor (nos dias de Antonil os engenhos reais funcionavam quase sempre com uma roda d'água): 
"Janeiro de 1867 - Em um engenho do município de Laranjeiras (Sergipe) o seu administrador, o capitão Manoel Rodrigues da Silva, tendo ido azeitar os ferros da máquina a vapor que ali trabalha, sucedeu que pegasse uma das mangas do seu paletó e irresistivelmente atraiu o corpo sem mais poder ser socorrido, e de modo a ficar no mesmo instante esmagado e reduzido a esqueleto, e esmigalhado todo em pedaços menores de um palmo!" (³)
Pois sim, voltando ao assunto do trabalho das escravas, veremos agora quantas, segundo Antonil, exerciam suas tarefas nesse lugar:
"As escravas de que necessita a moenda ao menos são sete ou oito, a saber: três para trazer cana, uma para a meter, outra para passar o bagaço, outra para concertar e acender as candeias, que na moenda são cinco, e para limpar o cocho do caldo (a quem chamam cocheira ou calumbá) e os aguilhões da moenda e refrescá-los com água para que não ardam, servindo-se para isso do parol da água, que tem debaixo do rodete, tomada da que cai no aguilhão, como também para lavar a cana enlodada; e outra, finalmente, para botar fora o bagaço, ou no rio, ou na bagaceira, para se queimar a seu tempo. E se for necessário botá-lo em parte mais distante, não bastará uma só escrava, mas haverá mister outra, que a ajude, porque de outra sorte não se daria vazão a tempo e ficaria embaraçada a moenda." (⁴) 
Quase podemos visualizar a incessante movimentação que caracterizava um engenho em época de safra. Nada de trabalho leve e, para acabar de vez com as eventuais fantasias sobre a rotina dos escravos e escravas, na mais perigosa das tarefas, eram elas que, literalmente, eram obrigadas a correr o risco.

(1) Sobre a real identidade de André João Antonil, veja: Antonil e a vida diária em um engenho de açúcar no Brasil Colonial.
(2) Cultura e Opulência do Brasil Por Suas Drogas e Minas, p. 54 na edição original.
(3) Folhinha de Modinhas Para o Ano Bissexto de 1868. Rio de Janeiro: Antônio Gonçalves Guimarães & Comp., p. 168.
(4) Cultura e Opulência... pp. 54 e 55 na edição original.


Veja também:

terça-feira, 17 de maio de 2011

O trabalho das escravas nos engenhos de açúcar: Parte 1 - Na lavoura canavieira

A julgar pelas ilustrações que podem ser vistas em alguns livros didáticos, os engenhos de açúcar do Brasil colonial eram um território essencialmente masculino. Escravas? Sim, mas dentro da casa-grande, nos trabalhos domésticos. No entanto, essa é uma visão intrinsecamente equivocada. Na pequena série que inicio com esta postagem veremos, a partir da obra de Antonil (¹), quais eram, de fato, os trabalhos entregues às escravas. Testemunha ocular do que se passava nos maiores engenhos do Nordeste, esse notável jesuíta deixou um relato muito diferente daquele que poderia ser sugerido pelas representações convencionais.
"As mulheres usam de foice e de enxada, como os homens, porém nos matos somente os escravos usam de machado."(²)
E, no corte da cana, homens e mulheres trabalhavam, ainda que, segundo Antonil, houvesse uso frequente de uma divisão de tarefas:
"Assim os escravos como as escravas se ocupam no corte da cana, porém comumente os escravos cortam e as escravas amarram os feixes. Consta o feixe de doze canas e tem por obrigação cada escravo cortar em um dia sete mãos de dez feixes por cada dedo, que são trezentos e cinquenta feixes, e a escrava há de amarrar outros tantos com os olhos da mesma cana; e se lhes sobejar tempo, será para o gastarem livremente no que quiserem, o que não se concede na limpa da cana, cujo trabalho começa desde o sol nascido até o sol posto, como também em qualquer outra ocupação que se não dá por tarefa." (³)
A citação precedente nos dá uma ideia nítida do que era a condição de um escravo - e de uma escrava - na lavoura canavieira. Não chega a ser surpreendente, pois, que alguns autores entendam que, na média, a expectativa de vida dos escravos, a partir do momento em que chegavam ao engenho, não ultrapassava os dez anos, tal o grau de exaustão a que eram submetidos ("desde o sol nascido até o sol posto..."). Mas, para os senhores, isso não era um grande problema, já que o tráfico de africanos, nesse tempo, encarregava-se rapidamente da substituição da "peça", como então se dizia. Os lucros do açúcar compensavam plenamente a despesa.

(1) Cultura e Opulência do Brasil Por Suas Drogas e Minas. Para ler sobre a verdadeira identidade de André João Antonil, acesse: Antonil e a vida diária em um engenho de açúcar no Brasil Colonial.
(2) Na edição original, de 1711, que foi proibida e confiscada, esse trecho está na página 23.
(3) Também na edição original, p. 44. 


Veja também:

domingo, 15 de maio de 2011

Pena, tinteiro, papel e teclado

Houve um tempo em que as (poucas) pessoas que escreviam usavam penas preparadas para isso - penas mesmo, de ave, geralmente penas de ganso, que eram consideradas as melhores. Além de serem de ganso, mandava a tradição que fossem, se possível, da asa direita, já que se acreditava que essas eram as de melhor qualidade. Acontece que, como instrumentos de escrita, as penas desgastavam-se rapidamente e precisavam ser refeitas ou substituídas. A invenção das penas de metal (um longo processo, principalmente ao longo do século XVIII) resolveu em parte o problema do desgaste, conservando-se nos novos instrumentos de escrita a forma básica das antigas penas, assim como, por metonímia, o nome.
Restava ainda a solucionar a questão de que, ao escrever, a pena necessitava, a cada instante, ser molhada em um tinteiro, o que contribuía para tornar a escrita irregular e extremamente morosa (embora eu às vezes me pergunte se isso não resultaria em uma vantagem, ao possibilitar maior tempo para reflexão sobre o que se escrevia). De qualquer modo, papel, naqueles tempos, era um artigo dispendioso que devia ser usado com sabedoria, para propósitos bem definidos e não para registrar garatujas imprestáveis. Quase todos haveremos de concordar que ainda precisamos dessa parcimônia, já não em virtude do preço, mas porque as árvores precisam viver.
A dificuldade com o reabastecimento de tinta começou a ser solucionada em fins do século XIX com a invenção (*) e gradual aperfeiçoamento das canetas-tinteiro, que tinham algum tipo de reservatório de tinta para garantir maior autonomia a quem escrevia. O problema nesse caso era o preço elevado que fazia delas, ao menos inicialmente, objetos de uso profissional e não uma ferramenta com a qual qualquer pessoa podia escrever. Os jovens escolares, por exemplo, continuaram, décadas afora, a escrever com a velha pena de metal, provocando, nas salas de aula, as frequentes, desastrosas e desastradas consequências que invariavelmente resultavam dos tinteiros entornados sobre as carteiras.
Há ainda a acrescentar que o crescimento nos índices de alfabetização em grande parte do mundo ao longo da primeira metade do século XX provocou uma nova demanda por instrumentos de escrita que fossem, simultaneamente, baratos e confiáveis, demanda essa que só viria a ser plenamente satisfeita com a popularização das canetas esferográficas, um invento dos anos quarenta que se popularizou ao longo dos cinquenta. Fato curioso a respeito das esferográficas e que vale a pena recordar é que o início de sua comercialização resultou em um fenômeno muito parecido (guardadas, evidentemente, as proporções do mercado consumidor da época), ao ocorrido recentemente em relação aos tablets, com filas de compradores ansiosos e todas as unidades postas à venda rapidamente esgotadas.
Quem ainda escreve à mão, com lápis ou caneta? Excetuando-se a criançada em idade escolar, é perfeitamente possível a alguém passar dias e até semanas sem colocar uma só letra no papel, servindo-se, em lugar disso, de meios virtuais de escrita. Ora, esse fato tem levado muitos educadores a questionar a necessidade de impor às crianças o aprendizado da escrita manual - com lápis e caneta - e consequentemente, da muitas vezes detestada caligrafia. Afinal, se apenas escrevemos com o uso de teclados (reais ou virtuais), porque deveríamos gastar o tempo precioso dos jovens educandos no aprendizado de um método de escrita claramente ultrapassado?
Essas não são questões para as quais temos respostas prontas e, por isso, toda a prudência precisa ser empregada. É verdade que, quando as esferográficas já eram populares e de baixo custo, resultando em escrita fácil, rápida e limpa, ainda havia estabelecimentos de ensino que exigiam de seus alunos o uso de penas (metálicas, por suposto) ou de canetas-tinteiro, para desgraça geral e dos canhotos em particular, a quem a escrita molhada, da esquerda para a direita, era um óbvio transtorno, daí a ideia estúpida, mas amplamente divulgada, de que "canhotos tinham letra feia", que ia a extremos em instituições que obrigavam os pequenos canhotos a escreverem como se fossem destros, ou seja, usando a mão direita. Não é, portanto, nenhuma surpresa que tantos professores torturassem alunos com métodos antiquados e nem que tantos alunos odiassem escolas e professores incapazes de compreender as vantagens de um avanço tecnológico tão evidente.
Como será em nossos dias? Só o tempo nos dará resposta, mas quando há dúvida, pode-se ao menos optar pela adoção de um modelo educacional que não seja omisso quanto às possibilidades das novas tecnologias, de modo que a transição seja feita da forma mais suave e intelectualmente estimulante possível.

Anúncio de caneta com depósito de tinta,
Revista Echo Phonographico, janeiro de 1904

(*) Há controvérsias a respeito, mas geralmente tem-se o ano de 1884 como sendo o do registro da primeira patente de uma caneta que poderia, sem sombra de dúvida, ser considerada uma caneta-tinteiro.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Moedas de troca no comércio de africanos para escravização: Parte 3 - A Macuta

Depois de ler as postagens anteriores sobre mercadorias que eram usadas no comércio realizado na África é possível que você, leitor, venha a interrogar-se se não haveria moedas, como as que hoje conhecemos, empregadas particularmente no tráfico de africanos para escravização. Sim, havia. Há uma obra excelente sobre as moedas portuguesas, em edição do século XIX, mais precisamente de 1856, cujo título é Memória das Moedas Correntes em Portugal, Desde o Tempo dos Romanos Até o Ano de 1856, sendo seu autor Manuel Bernardo L. Fernandes (¹). Nas páginas 266 e 267 encontramos a seguinte explicação:
"A Macuta era moeda de conta, ou forma de contar, de que usavam os negros em alguns sítios da Costa da África, e particularmente em Angola. Estabelecido o número destas moedas que pretendiam por um escravo, avaliavam também em Macutas os diferentes objetos que deviam dar em troca, e por esta forma faziam todas as suas transações. Parece que por este motivo o Sr. D. José I mandou lavrar as moedas de prata e de cobre com o nome de Macutas, e com o valor de Meio Tostão, para ficarem representando como moedas efetivas as formas porque ali se contava."
Embora só existam documentos mostrando Macutas sendo lavradas em Lisboa a partir de 1769, existem moedas de prata e de cobre de 1762 e 1763. Eram, obviamente, uma tentativa lusa de disciplinar o uso de moedas na "África Portuguesa". Interessante é saber que também no Brasil foram lavradas Macutas, conforme atesta o mesmo autor e conforme se vê na fotografia ao lado:
"Em 1814 se lavraram no Brasil 2, 1 e 1/2 Macutas de cobre, para Angola, com metade do peso que tinham as que anteriormente se haviam feito; e parece que por esses tempos se puseram contramarcas ou carimbos nas correntes de cobre lavradas pelo Sr. D. José I e Sra. D. Maria I, para lhes dobrar o valor, tornando-as iguais às de 1814, o que não podemos verificar, porque desde que o Sr. D. João VI foi em 1807 para o Brasil, unicamente do Rio de Janeiro se enviaram as ordens para os valores das moedas das nossas colônias." (²)
Está aí, portanto, para satisfação dos curiosos, uma "moeda de verdade", usada no tráfico de escravos.

(1) FERNANDES, Manuel Bernardo Lopes. Memória das Moedas Correntes em Portugal, Desde o Tempo dos Romanos, até o Anno de 1856. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1856.
(2) Ibid., p. 271.


Veja também:

terça-feira, 10 de maio de 2011

Moedas de troca no comércio de africanos para escravização: Parte 2 - O tabaco do Nordeste brasileiro

Presa nos elos de uma só cadeia, 
A multidão faminta cambaleia, 
E chora e dança ali! 
Um de raiva delira, outro enlouquece, 
Outro, que martírios embrutece, 
Cantando, geme e ri!
                Castro Alves, O Navio Negreiro

Se o "zimbo da Bahia" (veja postagem anterior) forneceu uma quase inacreditável moeda para o comércio de africanos que eram forçados a vir como escravos ao Brasil, não era, no entanto, a única mercadoria que se levava à África. Dentre as muitas outras está o tabaco que se produzia no Nordeste brasileiro. Vale lembrar ao leitor que, durante os dois primeiros séculos da colonização, a região Nordeste foi, de longe, a mais valorizada economicamente, panorama que só passaria por considerável alteração quando da descoberta de minas de ouro nas Gerais e Goiazes (conforme expressões usuais na época, evidentemente).
Sobre o tabaco despachado da Alfândega da Bahia e que se reservava ao comércio no Continente Africano, escreveu André João Antonil (*), em sua legendária obra Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas, de 1711:
"Deste tabaco se permite a extração de treze mil arrobas para a navegação da Costa da Mina, que se arrumam em cinco mil rolos pequenos de três arrobas, os quais também pagam a setenta réis por cada rolo para o sobredito contrato da Câmara, e importa mil cruzados."
A antiga arroba portuguesa equivale, no sistema métrico, a 14,688 kg e, portanto, 13 mil arrobas resultavam em 190.944 kg. Tirem-se daí as conclusões pertinentes ao montante de comércio que se realizava na África, sabendo, certamente, que o tabaco não era a única mercadoria que entrava nas trocas ali realizadas e que não apenas escravos eram comprados. Estes, porém, quase sempre destinados aos engenhos açucareiros no Brasil, eram embarcados para a longa e terrível viagem nos tumbeiros, nome vulgarmente dado aos navios negreiros que faziam a "carreira da África" e que era ironicamente explícito quanto à sua função, ao contrário do que ocorria com os escritos de muitos autores cultos, cujos eufemismos em relação à escravidão mencionei na postagem anterior.

(*) Para mais detalhes quanto à verdadeira identidade de André João Antonil, veja:
Antonil e a vida diária em um engenho de açúcar no Brasil Colonial

domingo, 8 de maio de 2011

Moedas de troca no comércio de africanos para escravização: Parte 1 - O zimbo da Bahia

Muitos autores dos primeiros tempos do Brasil colonial eram um tanto indiretos quando faziam referência ao infame comércio de seres humanos de que eram abastecidos de escravos os mercados na colônia (e não só!). Esses falsos pudores, eufemismos hipócritas, eram produto, quase sempre, de severas dúvidas de consciência, principalmente em religiosos. Afinal, como explicar que a Igreja estendesse sua proteção, ainda que ineficaz, sobre a população nativa do Brasil, mas referendasse a escravização de africanos, sendo ela mesma, por vezes, senhora de muitos trabalhadores compulsórios? É desnecessário lembrar que, a despeito disso, havia entre o clero quem enxergasse e condenasse toda e qualquer apropriação de um ser humano por outro, mas as vozes nesse sentido eram, infelizmente, a minoria.
Na época a justificativa dada era que, para os africanos, a escravidão resultaria em grande bem, por serem levados ao conhecimento da religião cristã. Resta saber quão cristãmente eram tratados esses infelizes, condenados quase invariavelmente a uma vida de torturante trabalho e a uma morte prematura decorrente de seus sofrimentos quotidianos.
Gente da importância do Pe. Antônio Vieira pode exemplificar o que acabei de dizer, na medida em que o célebre pregador assumia em seus discursos a defesa do direito dos indígenas à liberdade, embora a escravidão de africanos lhe parecesse razoável. Temos o hábito de atribuir tudo isso ao espírito da época. Faz parte, mas não nos deve cegar os olhos para a quase interminável carreira de desgraças que a escravidão acarretou ao Brasil. A propósito, sabemos pelos testamentos deixados pelos bandeirantes que morriam em campanha que a moda dos eufemismos para referir-se a escravos estendia-se aos indígenas capturados. Nesse caso, todavia, a explicação é fácil: a escravidão indígena era formalmente proibida, embora extensamente praticada, de modo que era preciso cuidado no relatar em testamento a posse do que se tinha mas não se devia ter. Simples mesmo, não?
Pois bem, o que vou referir agora chega a parecer loucura. Mas não é. Escreveu Frei Vicente do Salvador, em sua  História do Brasil (c. 1627), ao empreender uma descrição da Capitania de Porto Seguro:
"Porém sem isto tem outras coisas, pelas quais merecia ser bem povoada; porque no rio Grande, onde parte com a Capitania de Ilhéus, tem muito pau-brasil, e no rio das Caravelas muito zimbo, dinheiro de Angola, que são uns buziozinhos mui miúdos de que levam pipas cheias, e trazem por elas navios de negros, e na terra deste rio, e em todas as mais que há até entestar com as de Vasco Fernandes Coutinho, se dá muito bem o gado vacum, e se podem com facilidade fazer muitos engenhos."
Era só o que faltava: "muito zimbo, dinheiro de Angola [...] de que levam pipas cheias, e trazem por elas navios de negros..." Essa quase inacreditável coincidência "natural" viria a favorecer o tráfico. Como veremos nas próximas postagens, os búzios da Bahia não foram, porém, a única "moeda" em vigor na África.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

O joão-de-barro e o interesse por seres vivos exóticos nos relatos sobre o Brasil Colonial

Ninho de joão-de-barro
Na postagem Uma Planta Desobediente às Regras da Filosofia de 27 de março deste ano, tratei de como os primeiros autores que escreveram sobre o Brasil quase sempre incluíam em suas obras algumas observações sobre curiosidades tanto da fauna quanto da flora do "Novo Mundo", que se lhes afigurava tão diversa daquela a que estavam habituados na Europa. Os séculos passaram, é verdade, mas o interesse sobre esses aspectos exóticos continuou. Tanto assim que, em 1817, a Corografia Brasílica do Padre Ayres de Casal continuava a listar o que de mais extravagante podia haver entre os animais encontrados no Brasil e, dentre tantos outros mencionados, encontra-se uma simpática ave, que se vê em uma parte considerável da América do Sul - estou falando do joão-de-barro (Furnarius rufus). Naturalmente o que surpreendia nosso autor não era, por suposto, a aparência desse pássaro, aliás muito comum, mas a forma como edifica seu ninho, com tal habilidade que, se fosse mais universalizada entre os seres vivos, poderia resolver os problemas habitacionais da humanidade... Sorria, leitor, mas passe em seguida à descrição de Ayres de Casal:
"João-de-barro é uma casta de cotovia, amarelada com uma risca esbranquiçada por cima dos olhos, e só é notável pela formatura do seu ninho de barro, donde se lhe derivou o nome. É feito com muita arte e perfeição no forcado de uma árvore, e consta de um corredor com um pouco mais de um palmo de comprido, com uma sala quase do mesmo comprimento a um lado, todo de abóbada, com uma janela de permeio no fim do corredor, cuja entrada é pequena e fica sempre para aquela parte donde o vento sopra menos. Este edifício resiste às invernadas por muitos anos."
A descrição do ninho chega a ser muito interessante, ainda que, para quem nunca viu um, talvez pareça confusa. Já a classificação da ave como  "uma casta de cotovia" poderia fazer arrepiar os cabelos de um ornitólogo contemporâneo, mas é compreensível para tempos em que os conhecimentos fundamentados na observação, comparação e experimentação com base científica ainda engatinhavam. Ocorre que, quase sempre,  os autores podiam servir-se apenas de palavras para dar a entender a seus leitores o que era a Natureza nas Américas. A vinda de artistas como integrantes  das missões científicas estrangeiras que estiveram no Brasil durante o século XIX foi importante para começar a fixar em forma de desenhos e aquarelas  os contornos de seres vivos exóticos, muitos deles hoje correndo perigo de extinção. Mais tarde, a fotografia iria popularizar de vez a imagem de onças, jacarés, piranhas e outras feras mais.


Veja também:

terça-feira, 3 de maio de 2011

As ruínas podem ser belas

Restaurar antigas construções constitui-se em parte essencial do que se convencionou chamar de preservação do patrimônio histórico. Não é tarefa fácil, já que demanda, quase sempre, um volume expressivo de recursos, em paralelo à exigência de mão de obra muito qualificada. Sim, não é também uma tarefa fácil porque em um país como o Brasil, no qual há recursos claramente insuficientes destinados à educação e à saúde pública, não chega a surpreender que o patrimônio histórico venha a ser considerado como coisa de importância secundária. Não o é, entretanto, ainda que, por preceito, numa sociedade democrática a população tenha todo o direito a esclarecimentos quanto à utilidade daquilo que se quer conservar. Na última semana, ouvi alguém dizer, em relação a uma igreja do século XIX, que melhor seria colocar tudo aquilo abaixo, já que precisa de cuidados contínuos, é "velha demais" e "um dia desses ainda vai cair na cabeça de um monte de gente". Ora, basta que eventualmente os encarregados da administração pública venham a ter essas mesmas ideias e a bela igrejinha do barroco tardio acabará caindo mesmo, mas por falta do devido cuidado.
Um dos prédios da Casa de Saúde de Amparo,
datado de 1876
Todavia... Nunca lhe ocorreu, leitor, que o desgaste provocado pela passagem do tempo pode ser muito charmoso, bonito até? Não estou propondo, evidentemente, que velhos edifícios, quase caindo, sejam deixados a despencar, pondo em risco a segurança de quem quer que deles se aproxime. Além disso, como todos sabem, nem tudo o que é velho tem de ser preservado. A não ser em casos excepcionais, quando um determinado conjunto arquitetônico é particularmente expressivo, é mais razoável supor que seja preservada uma amostra significativa, assegurando a memória de um dado período, sem comprometer o uso racional do espaço urbano, de acordo com as novas demandas populacionais e tecnológicas.
A placa informa que o prédio está
em vias de restauração
Como se vê, esse é um assunto que requer decisões inteiramente desapaixonadas, fruto de estrita racionalidade. Acontece que, por vezes, a beleza de certos prédios em ruínas nos dá o que pensar. 
Dentro da área do Parque Ecológico de Amparo (S.P.) estão os antigos edifícios da Casa de Saúde, erguidos na segunda metade do século XIX, época na qual desenvolveu-se uma nova concepção de serviços médicos, muito diversa dos antigos conceitos que até então haviam predominado e relacionados, por exemplo, à localização em termos de área urbana ou ao uso do espaço construído. No local, uma placa indica que o conjunto está a caminho de uma restauração. Excelente, mas é inegável que as construções, já tomadas pelo mato, têm o encanto do que poderíamos chamar de "peso do passado", visível a quem quer que seja capaz de refletir sobre o que observa.  Afinal, como seria possível capturar (e preservar) a magia dessa árvore que cresceu incrustada na parede da velha edificação?

Quanto tempo terá sido necessário para que essa árvore crescesse na parede?


Veja também:

domingo, 1 de maio de 2011

Um comício de trabalhadores em 1914

No início do século XX a maioria das leis trabalhistas, como hoje as conhecemos, ainda não existia. O Brasil saíra formalmente da escravidão em 1888 e a presença  massiva trabalhadores livres urbanos era ainda quase uma novidade. O mesmo se pode dizer quanto às organizações de operários, vistas geralmente com muita suspeita pelas autoridades que não tinham ainda o hábito de tratar com eventuais reivindicações dos trabalhadores que eram, majoritariamente, naquele momento, imigrantes estrangeiros. Aliás, a condição de imigrante era vista como sinônima à de "agitador político", presumindo-se que os trabalhadores estrangeiros já entravam no Brasil infectados com as ideias revolucionárias aprendidas em seus países de origem...
A imprensa (não me refiro, claro, àquela vinculada aos movimentos operários) quase sempre adotava o discurso governamental, quando não ignorava, simplesmente, tudo o que estava relacionado à luta por direitos e garantias dos trabalhadores. Quebrando esse "costume", a edição de 25 de maio de 1914 da revista paulistana A Cigarra trouxe a foto abaixo:


Dizia a legenda original:
"Comício de Operários - Fotografia tirada especialmente para "A Cigarra", por ocasião do último comício realizado pelos operários, no Largo da Sé, desta Capital".
À parte observações sobre o vestuário predominante, percebemos pela foto que o comício fez-se sob chuva, com participação quase exclusivamente masculina, o que não significa que mulheres não atuassem com operárias - havia muitas - mas, como mostra a imagem, ir a uma manifestação  pública era ainda "coisa de homem", embora haja, por esse tempo, exemplos significativos de mulheres envolvidas com a perigosa atividade de reivindicar melhores condições de trabalho (até mesmo em eventos públicos). Por causa das limitações à condição das mulheres como cidadãs naquela época, a luta pelos direitos das trabalhadoras teve de ser empreendida mais ou menos simultaneamente à luta pelos direitos políticos das mulheres em geral.


Veja também: