terça-feira, 6 de março de 2012

Criaturas monstruosas das águas do Brasil

Quem é que ainda não viu algum desses programas de televisão sobre supostas aparições de monstros ou animais misteriosos e assustadores? Há programas sérios, é verdade, procurando demonstrar, mediante claras evidências, que tudo não passa de mero produto da imaginação de algumas pessoas, mas há outros, talvez a maioria (infelizmente), nos quais os fatos são intencionalmente distorcidos, para fazer crer a uma multidão de desinformados que as ditas aparições são a mais pura verdade. A partir disso, não constitui nenhuma novidade que haja, mesmo em nossos dias, gente que acredita no lobisomem, no chupa-cabra, no pé-grande, e por aí vai.
Há alguns séculos, porém, a crença na existência de seres monstruosos era generalizada, e mesmo as pessoas mais instruídas não eram muito questionadoras a esse respeito (¹). Há várias razões para isso, mas aqui me limito a apontar três delas:
a) Desde tempos remotos os mais diversos povos tinham suas lendas que envolviam monstros do mar, capazes de devorar navios inteiros de um só golpe e, na impossibilidade de uma verificação criteriosa dos fatos, não é estranho que tais lendas fossem perpetuadas como se fossem narrativas de acontecimentos reais (é bom lembrar que os padrões que hoje entendemos como científicos ainda não existiam);
a) Havia, pela época da Grandes Navegações, uma certa consciência de que o mundo era bem maior do que aquilo que se conhecia da Europa, norte da África e parte da Ásia, parecendo razoável supor que nesses lugares remotos e ainda por descobrir devia haver animais muito diferentes daqueles que já eram catalogados;
b) O medo era uma companhia garantida para os exploradores que se aventuravam por novas terras, de modo que qualquer coisa não devidamente observada podia passar, para mentes cheias de terror e imaginação, por ser o avistamento de criaturas monstruosas, enormemente letais.
Diante disso, não é difícil verificar que, ao longo da ocupação por europeus das terras no Continente Americano, foi-se construindo um apreciável "patrimônio" de superstições que, associadas às crenças nem sempre bem compreendidas dos povos indígenas, levaram ao estabelecimento de certas tradições que, por muito tempo, foram aceitas como verídicas. Trataremos, a seguir, de algumas delas.
Depois de fazer algumas considerações sobre a fauna do Brasil, Frei Vicente do Salvador deixou um relato sobre "homens marinhos" que ilustra bem a mistura de medo do desconhecido com crenças dos nativos da América:
"Há também homens marinhos, que já foram vistos sair fora da água após os índios, e nela hão morto alguns que andavam pescando, mas não lhes comem mais que os olhos e nariz, por onde se conhece que não foram tubarões, porque também há muitos neste mar, que comem pernas e braços e toda a carne." (²)
Ao tempo das monções, eram frequentes os "depoimentos" que davam conta da existência de canoas que vagavam sem piloto pelo  Tietê, bem como de monstros que habitariam suas águas, como se vê por esse trechinho anotado pelo sargento-mor Teotônio José Juzarte:
"... e navegando passamos por um poço que é um estreito que faz o rio morto, muito fundo, suas águas denegridas com seus paredões de pedra de um e outro lado muito fúnebre, e triste, ao passar esta paragem encontramos muito fétido, cujo lugar se chama pela língua da terra o poço de Pirataraca, cujo temiam muito passar os antigos por dizerem havia ali um grande bicho..." (³)
Outro que relatou coisa semelhante, em relação às crenças populares na bacia do rio Paraguai, foi Hércules Florence:
Das Sete Lagoas conta o povo fábulas aterradoras. Essas poçazinhas, pelo que dizem, são de profundidade insondável; enormes jacarés e monstros aquáticos ocultam-se debaixo de grandes rochas submergidas, prestes a devorar os que por desgraça lá caírem." (⁴)
Outras muitas fábulas há, todas seguindo mais ou menos a mesma linha, sem esquecer do famoso boto amazônico, cuja prole anda pelas raias do incomensurável. Mas resta ainda um episódio famoso, talvez dos mais antigos, que deixei para o final pela riqueza de detalhes com que foi narrado. Frei Vicente do Salvador, cuja obra deve ter sido concluída nos últimos anos da década de vinte do século XVII, referiu-se a ele, dizendo ter ocorrido na Capitania de São Vicente no ano de 1564. Mas, com grande probabilidade, esse primeiro historiador nascido no Brasil deve ter lido sobre o tal acontecimento em outra obra bem mais antiga, a famosa História da Província de Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos Brasil, escrita por Pero de Magalhães Gândavo e publicada em Portugal em 1576. O trecho é longo, mas em síntese conta como Baltasar Ferreira, filho do Capitão, sendo já tarde da noite, foi alertado por uma índia de que havia na praia um ser monstruoso, ao qual o rapaz resolveu enfrentar. A partir daqui, segue o relato de Pero de Magalhães:
O "monstro marinho" que teria aparecido em
São Vicente no Século XVI
"Então se levantou ele mui depressa, e lançou mão de uma espada que tinha junto de si, com a qual botou somente em camisa pela porta fora, tendo para si (quando muito) que seria algum tigre ou outro animal da terra conhecido, com a vista do qual se desenganasse do que a índia lhe queria persuadir. E pondo os olhos naquela parte que ela lhe assinalou, viu confusamente o vulto do monstro ao longo da praia, sem poder divisar o que era por causa da noite lho impedir e o monstro também ser coisa não vista, e fora do parecer de todos os outros animais. E chegando-se um pouco mais a ele, para que melhor se pudesse ajudar da vista, foi sentido do mesmo monstro, o qual levantando a cabeça, tanto que o viu, começou de caminhar para o mar donde viera. Nisto conheceu o mancebo que era aquilo coisa do mar, e antes que nele se metesse, acudiu com muita presteza a tomar-lhe a dianteira. E vendo o monstro que ele lhe embargava o caminho, levantou-se direito para cima como um homem, ficando sobre as barbatanas do rabo, e estando assim a par com ele, deu-lhe uma estocada pela barriga, e dando-lha no mesmo instante se desviou para uma parte com tanta velocidade, que não pôde o monstro levá-lo debaixo de si; porém não pouco afrontado, porque o grande torno de sangue que saiu da ferida, lhe deu no rosto com tanta força que quase ficou sem nenhuma vista. E tanto que o Monstro se lançou em terra, deixa [sic] o caminho que levava, e assim ferido, urrando com a boca aberta sem nenhum medo, remeteu a ele, e indo para o tragar a unhas e dentes, deu-lhe na cabeça uma cutilada mui grande, com a qual ficou já mui débil, e deixando sua vã perfia, tornou então a caminhar outra vez para o mar. Neste tempo acudiram alguns escravos aos gritos da índia que estava em vela, e chegando a ele o tomaram todos já quase morto, e dali o levaram dentro à povoação, onde esteve o dia seguinte à vista de toda gente da terra."
Ora, o mais interessante é que no livro de Pero de Magalhães Gândavo há um desenho do dito monstro, reproduzido nesta postagem como consta na primeira edição de 1576. Aos muito curiosos, digo que, observando cuidadosamente o desenho e o relato acima, talvez seja possível supor qual o tipo de animal que teria enfrentado o bravo rapaz de São Vicente (que, segundo o já citado autor, teria perdido a fala por um certo tempo após esse evento).
O que concluir de tudo isso? Não chega a ser exatamente uma surpresa que, na terra das águas que "são muitas, infindas", no dizer de Pero Vaz de Caminha, algumas das mais famosas superstições e fantasias viessem a brotar justamente do mar, dos rios e das lagoas. Um verdadeiro banquete para quem se dedica a interpretar tais fatos no âmbito da psique humana, não?
(2) História do Brasil. c. 1627.
(3) Citado em: TAUNAY, Affonso de E. História das Bandeiras Paulistas 3ª ed., vol. 3. São Paulo: Melhoramentos, 1975, p. 250.
(4) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 198.

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