Não foi pelas paisagens belas da região que holandeses tentaram se estabelecer no Nordeste brasileiro no Século XVII - embora os lindos cenários não faltem por lá. Pau-brasil, tabaco e, principalmente, açúcar, estavam entre as mercadorias desejadas pela Companhia das Índias Ocidentais. A briga pelo controle da região durou mais de duas décadas e, ao contrário do que se poderia prever, foi concluída com a saída das forças holandesas (¹).
Alimentar os que lutavam, de um lado e de outro, não era tarefa fácil. Em certos momentos, a escassez de suprimentos chegou a decidir o controle de fortalezas e acampamentos militares. Entre os que resistiam à ocupação holandesa, fossem eles portugueses do Reino ou do Brasil, ou ainda espanhóis e italianos enviados como reforço (²), o principal sustento vinha de um prosaico alimento da terra, beneficiado segundo técnica indígena: a farinha de mandioca. Ciente de que seus leitores europeus provavelmente não sabiam do que se tratava, Duarte de Albuquerque Coelho explicou: "A mandioca é uma raiz semelhante a um nabo grande, de que se faz a farinha que vem a ser o pão e principal sustento do Brasil" (³). Em outra passagem do diário da guerra que escreveu, observou: "A cada dia era mais incômoda a falta de farinha [de mandioca], por ser o principal e costumeiro sustento; e se não chegassem da Bahia (⁴) alguns barcos dela, mal se pudera passar, e era muito o que passavam mal os moradores por essa falta" (⁵).
Quanto aos holandeses, tiveram que se contentar, a princípio, com suprimentos enviados da Europa que, depois de meses no mar, certamente não deviam ser o que há de mais saboroso. Mas, à medida que obtiveram algum controle do território ao redor de Olinda e Recife, foram aderindo aos costumes locais quanto à alimentação. Sabe-se disso porque, após desistirem do ataque à Bahia em maio de 1638, deixaram para trás alguns suprimentos, assim descritos por Duarte de Albuquerque: "[...] mais de mil barris de farinha, de que faziam seu pão de munição, e muitos outros de legumes e arroz [...]" (⁶). É pouco provável que essa farinha fosse outra coisa que não a de mandioca, por pelo menos quatro razões: qualquer farinha de trigo ou centeio que eventualmente viesse da Europa teria pouca chance de chegar ao Brasil em bom estado, se considerarmos as condições de transporte na época; não havia plantações de trigo no Nordeste brasileiro que pudessem resultar em tanta farinha; no contexto da obra de Duarte de Albuquerque Coelho, "farinha" é sempre a de mandioca, e qualquer outra, como pouco usual na situação, certamente teria sido especificada por ele; finalmente, convém recordar que foi prática durante a guerra que forças da Companhia das Índias Ocidentais atacassem engenhos, não só para intimidar moradores, mas para capturar suprimentos. Que outra farinha achariam lá?
| Escravos descascando mandioca no Século XIX, muito tempo depois, portanto, dos fatos referidos acima (⁷) |
(1) Os soldados contratados pela Companhia das Índias Ocidentais não eram todos holandeses. Havia também gente de outras nacionalidades.
(2) Parte da luta contra a ocupação holandesa do Nordeste aconteceu durante a União Ibérica.
(3) COELHO, Duarte de Albuquerque. Memorias Diarias de la Guerra del Brasil. Madrid: Diego Diaz de la Carrera, Impressor del Reyno, 1654. Este trecho e os demais da mesma obra citados nesta postagem foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) Na Bahia estava a capital do Brasil na época.
(5) COELHO, Duarte de Albuquerque. Op. cit.
(6) Ibid.
(7) RIBEYROLLES, Charles. Brazil Pittoresco. Paris: Lemercier, 1861. A imagem original pertence à BNDigital e foi editada para facilitar a visualização neste blog.
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