quinta-feira, 31 de março de 2011

O surgimento de povoações no Brasil - As vilas litorâneas

Já que as primeiras povoações estabelecidas por portugueses no Brasil localizavam-se no litoral, era importante que fossem edificadas junto a bons portos naturais, além de ter, topograficamente, condições favoráveis à defesa, uma vez que os ataques de corsários eram frequentes e, com o tempo, o confronto com os indígenas (por razões óbvias), fez-se também habitual. Assim, considera-se que, formalmente, a primeira dessas povoações foi São Vicente, estabelecida por Martim Afonso de Sousa. É o próprio irmão desse explorador e navegador quem relata:
"A todos nos pareceu tão bem esta terra que o capitão determinou de a povoar, e deu a todos os homens terras para fazerem fazendas, e fez uma vila na Ilha de São Vicente e outra nove léguas dentro pelo sertão, à borda de um rio, que se chama Piratininga, e repartiu a gente nessas duas vilas e fez nelas oficiais; e pôs tudo em boa obra de justiça, de que a gente toda tomou muita consolação, com verem povoar vilas e ter leis e sacrifícios e celebrar matrimônios e viverem em comunicação das artes, e ser cada um senhor do seu e vestir as injúrias particulares e ter todos os outros bens da vida segura e conversável." (¹)
Dessas povoações junto ao litoral é que partiram, gradualmente, grupos de exploradores que buscavam investigar o interior do Brasil. E, segundo Saint-Hilaire, foi o mesmo Martim Afonso quem liderou um passo significativo nesse sentido:
"A Martim Afonso, em última palavra, deve-se o primeiro estabelecimento regular dos portugueses em o Novo Mundo. Esse ilustre homem não se contentou, porém, como tantos outros capitães portugueses, em explorar a costa; quis conhecer e desbravar o interior das terras. Através de mil perigos, escalou a cadeia marítima denominada pelos indígenas Paranapiacaba; do cume das altas montanhas que a constitui pôde fazer uma ideia exata da magnífica região cuja posse acabava Martim Afonso de assegurar para a monarquia lusa; e assim penetrou até a planície de Piratininga (1532), domínio de seu fiel aliado - o cacique Tibiriçá." (²)
Antigo canhão em Ubatuba, SP
Em diversos casos, as povoações litorâneas foram estabelecidas em locais de antigos aldeamentos indígenas. Considera-se que Ubatuba, no litoral de São Paulo, por exemplo, foi fundada, no século XVII,  no lugar a que os tamoios reuniam-se e denominavam Iperoig. Esse é um caso interessante, já que o povoamento veio também pelo interesse na defesa da terra como conquista portuguesa, uma vez que a área em que Ubatuba está localizada era frequentemente visitada por corsários franceses, que efetuavam comércio de pau-brasil com a população indígena e que,  por diversas vezes, tentaram estabelecer-se permanentemente no território. Entretanto, quase isolada no litoral norte de São Paulo, Ubatuba demorou a crescer. No início do século XIX, escrevia sobre ela o Padre Ayres de Casal:
"Ubatuba, vila pequena com uma igreja matriz e uma capela de N. Sra. da Conceição, situada junto à foz de uma ribeira, no princípio de uma planície fértil, e regada de várias torrentes: seus habitantes são pescadores e cultivadores de mandioca, arroz e café. Fica pouco menos de oito léguas ao nordeste de São Sebastião, e perto da raia da Província." (³)

Placa em monumento comemorativo à
"Paz de Iperoig" 
em Ubatuba - SP

(1) Diário da Navegação de Pero Lopes de Sousa pela costa do Brasil até o Rio Uruguai (de 1530 a 1532). Rio de Janeiro: Tipografia de D. L dos Santos, 1867, p. 66.
(2) SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 142.
(3) AYRES DE CASAL, Manuel. Corografia Brasílica.


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terça-feira, 29 de março de 2011

O surgimento de povoações no Brasil - Introdução

Até onde sabemos, a diversificada população indígena que habitava o Brasil antes da chegada dos europeus não tinha o hábito de constituir povoações duradouras, às quais poderíamos dar o nome de cidades. Geralmente nômades, os chamados (erroneamente) índios estabeleciam suas aldeias em áreas promissoras para caça, pesca e coleta, embora a agricultura fosse conhecida e, quase sempre, praticada. Isso, entretanto, não exclui o fato de que algumas vilas e cidades tenham surgido em locais das antigas aldeias indígenas.
Já os portugueses, por um tempo considerável, limitaram-se a estabelecer suas vilas ao longo do litoral, olhando para o relevo e a vegetação como barreiras quase intransponíveis, que só mais tarde foram vencidas, principalmente em nome da busca por metais preciosos. É por isso que Frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil, escreveu:
"Da largura que a terra do Brasil tem para o sertão não trato, porque até agora não houve quem a andasse por negligência dos portugueses, que sendo grandes conquistadores de terras não se aproveitam delas, mas contentam-se de as andar arranhando ao longo do mar como caranguejos."
Essa expressão, leitor, "andar arranhando ao longo do mar como caranguejos", ficou famosa, e é um retrato curioso e praticamente fiel do que aconteceu no primeiro século da colonização. Lembro que o manuscrito de Frei Vicente do Salvador foi concluído por volta de 1627, quando ele assinala que, em seus dias, era impossível descrever o interior do território brasileiro. A exploração de madeiras nobres foi, nesse período, a atividade econômica vista com mais interesse pelos comerciantes e povoadores lusos.
Acontece que o motivo que reteve os portugueses no litoral podia ser outro - pelo menos é o que diz Pero de Magalhães Gândavo no Tratado da Terra do Brasil, escrito ainda no século XVI:
"Não há pela terra dentro povoações de portugueses por causa dos índios que não o consentem, e também pelo socorro e tratos do Reino lhes é necessário estarem junto ao mar para terem comunicação de mercadorias. E por este respeito vivem todos junto da Costa."
Ainda assim, gradualmente, o interior foi sendo desvendado aos olhos europeus e, nos séculos subsequentes, povoações foram aparecendo ao longo do vasto território do Brasil, mais vasto ainda pela ocupação, por portugueses e seus descendentes, de terras que, pelo Tratado de Tordesilhas, deviam pertencer à Espanha.
Não é meu propósito esgotar o assunto do surgimento de núcleos urbanos no Brasil, mesmo porque os limites de um blog impossibilitariam a empreitada, mas trataremos, nas próximas postagens, de alguns padrões observáveis no surgimento de vilas e cidades. Dentro de um universo já bem conhecido, como são as povoações do litoral, dos antigos aldeamentos indígenas, das áreas de mineração, dos ranchos destinados ao pouso de tropeiros, das capelas e igrejas, dos postos militares de fronteira, das barreiras para cobrança de impostos e das estradas de ferro, elegeremos alguns aspectos para mais considerações.

domingo, 27 de março de 2011

Uma planta desobediente às regras da filosofia

Os primeiros europeus que chegaram à América, em fins do século XV e início do XVI, divulgaram dela descrições que estavam mais para um paraíso que para apenas mais um Continente. Árvores gigantescas, animais, flores e frutos exóticos, tudo era relatado até com um certo exagero, contribuindo para a formação de ideias um tanto fantasiosas e irreais, que mesclavam a apoteose da natureza ao horror dos espetáculos de canibalismo indígena.
Ainda que o exagero fizesse parte das narrativas que então se produziram, era inegável que um novo panorama de diversidade biológica se abria aos estudiosos que, no entanto, não estavam assim tão aptos a desvendar os segredos da América, prisioneiros que eram das velhas formas de pensar derivadas do escolasticismo de inspiração aristotélica.
Por suposto os primeiros autores que versaram sobre o Continente recém-descoberto eram todos europeus; mas, à medida que a colonização prosseguia, filhos de europeus nascidos na América passaram a constar entre os autores de obras que se destinavam claramente a maravilhar os leitores do Velho Mundo. Entre esses autores está Frei Vicente do Salvador que, até onde sabemos, foi o primeiro nascido no Brasil a lançar-se na empresa de escrever uma história da então colônia lusitana. Em seu livro, que por séculos permaneceu sem ser impresso, misturam-se descrições da terra que, em parte, ele conhecia bem (era natural da Bahia) à narrativa dos acontecimentos relacionados à ocupação e governo português, verdadeiras aventuras, muitas vezes, no exato sentido do termo. Seu estilo lembra um pouco o de Heródoto, fazendo-se antes um contador de histórias que um historiador com bases científicas, pelo menos quanto ao modo como hoje entendemos essa questão. Assim, leitor, para dar-lhe a oportunidade de saborear um pouquinho dessa História do Brasil, vai aqui um breve trecho descritivo de uma particularidade vegetal da América:
"Outras há de qualidades ocultas, entre as quais é admirável uma ervazinha, a que chamam erva viva, e lhe puderam chamar sensitiva, se o não contradissera a Filosofia, a qual ensina o sensitivo ser diferença genérica, que distingue o animal da planta, e assim define o animal, que é corpo vivente sensitivo.
Mas contra isso vemos, que se tocam a esta erva com a mão, ou com qualquer outra coisa, se encolhe logo e se murcha, como se sentira o toque, e depois que a largam, como já esquecida do agravo que lhe fizeram, se torna a estender e abrir as folhas; deve isto ser alguma qualidade oculta, qual a da pedra de cevar para atrair o ferro, e não lhe sabemos outra virtude."

Dormideira ou sensitiva (Mimosa pudica) com as folhas abertas

A mesma planta, após ser tocada, com as folhas fechadas
Sim, leitor, está permitido abrir um sorriso... Frei Vicente do Salvador era homem instruído, educado na Universidade de Coimbra, mas incorre aqui na ingenuidade de tentar encaixar todo o novo conhecimento nos velhos modelos herdados da filosofia medieval. Além disso, parece quase admitir a ideia de que pudesse haver alguma propriedade mágica, ainda desconhecida, na plantinha, que compara aos ímãs. Obviamente nada disso diminui o interesse por sua História do Brasil - para mim, só aumenta, na medida em que é um retrato fiel do pensamento da época - mesmo porque ele não era o único a ir por esse caminho, pelo qual passavam a maioria dos intelectuais do período (considera-se que o manuscrito foi concluído por volta de 1627).
Para encerrar a postagem, quero apenas assinalar que, como todo mundo sabe e, malgrado a oposição de Frei Vicente do Salvador, o nome popular dessa plantinha rasteira é mesmo sensitiva ou dormideira, ainda que a nomenclatura binomial a chame Mimosa pudica.


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quinta-feira, 24 de março de 2011

Surfando (literariamente) no rio Piracicaba

Muito do que se escreveu, em termos de Literatura propriamente dita, no Brasil do século XIX, ambienta-se na Corte, ou seja, no Rio de Janeiro, que era a Capital do país naquela época. Poucas são as obras que têm as capitais das Províncias (os atuais Estados) como cenário, e menos ainda as que retratam, de algum modo, a vida no interior do Brasil. Dentre essas últimas, encontra-se Til, de José de Alencar.
Til, obra publicada em 1871, desenrola-se no ambiente rural das fazendas de cana-de-açúcar nos arredores de Santa Bárbara e Piracicaba, no interior de São Paulo, em meados do século XIX. Fica evidente ao leitor atento que Alencar não conhecia pessoalmente a região - chega, para dar uma "ancoragem histórico-geográfica", a citar, em rodapé, a Corografia Brasílica do Padre Ayres de Casal (que fora publicada em 1817). A despeito disso, a obra, que procura transcrever com fidelidade o falar típico da área, intercalando trechos descritivos em meio ao correr da narração, não chega a ter grandes disparidades em relação à realidade, exceto por questões que qualquer um que conheça o lugar pode facilmente observar. Mas vamos em frente, que não é a análise literária o objetivo desta postagem, nem pretendo tirar ao leitor que queira percorrer o romance todo a diversão de descobri-lo por si mesmo.
Já na última parte da obra, encontramos um episódio que transcorre durante uma festa popular em Piracicaba. Deixemos que Alencar mesmo nos conte:
"A cidade da Constituição, outrora vila da Piracicaba, assenta nas rampas de uma colina que se eleva à margem do rio.
[...]
Era domingo: e havia na vila rebuliço de festa.
Pelas ruas, de ordinário soturnas e ermas, passavam ranchos de gente a pé e grupos de cavaleiros que acudiam à função. Às vezes era algum carro de bois, coberto com esteiras e atopetado de moças, crias e mucamas, que atroava os ares com o chio estridente.
Pouco mais de nove horas havia de ser.
Uma canoa acabava de abicar à ribeira junto à ponte, e dela saltavam Nhá Tudinha, Berta e Miguel, que também vinham atraídos pela festa.
O rancho subiu a ladeira que vai ter ao largo da matriz. Miguel, triste e abatido, investigava com um olhar de desânimo as janelas das casas. Berta a furto observava-o com uma expressão de terno ressentimento."
De onde vinham Nhá Tudinha, Berta e Miguel? O romance tem a resposta, dessa vez na  segunda parte, ao descrever sua morada:
"Na entrada do vale, onde assenta a freguesia de Santa Bárbara, via-se outrora à margem do Piracicaba, escontra o rio, um velho casebre.
Era uma antiga construção de taipa; e mostrava com pouca diferença o aspecto comum às habitações medianas que, naquela parte da Província de São Paulo, se encontram de espaço em espaço pela beira do caminho, e à distância dos arraiais e povoados."
Agora, leitor, raciocine comigo: Nhá Tudinha, Berta e Miguel moravam próximo a Santa Bárbara e, segundo Alencar, vieram à festa usando uma canoa, que desceu o rio Piracicaba. Chegam à cidade, sobem a ladeira (a atual rua Moraes Barros) e vão sair na Praça da Matriz (Praça José Bonifácio), onde hoje está a Catedral de Santo Antônio. Parece tudo correto, e talvez Alencar tenha até consultado algum mapa, eventualmente disponível, para entremear adequadamente narração e descrição. Mas há um problema - não se pode fazer o trajeto, como descrito, de canoa. Por quê? Ora, porque seguindo o rio entre Santa Bárbara e o ponto referido da antiga Vila da Constituição está o Salto do Piracicaba, conhecido como "véu da noiva", que é absolutamente intransponível de canoa, a menos que o tripulante seja doido de pedra! Portanto, não se pode imaginar uma senhora e dois jovens comportados tentando tamanha insanidade. Se tem alguma dúvida, olhe as fotografias e julgue por si mesmo...
Resta ainda mais uma observação. Como já mencionei, José de Alencar cita, em uma nota, o Pe. Ayres de Casal, isso no início de Til. Pois deveria ter ficado atento ao que esse mesmo autor refere na Corografia Brasílica:
"Com o seu termo, ao Poente, confina o da nova Freguesia de Percicaba [sic], cuja Matriz está em uma amena planura, em que termina uma colina sobre a margem meridional do rio que lhe dá o nome; e junto a uma vistosa cascata de muitos degraus, que ele ali forma, onde finda a navegação."
Note bem, onde finda a navegação. Na prática, o Piracicaba é navegável antes do salto e depois dele. A propósito, ao que sabemos, Aires de Casal também nunca esteve em Piracicaba, e baseou a maior parte de sua obra em relatos que ouviu, antigos manuscritos e mapas, nem sempre precisos, que consultou.

Casa do Povoador, margem esquerda do Rio Piracicaba, logo abaixo do "véu da noiva".


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terça-feira, 22 de março de 2011

No mundo da Lua

Na noite do dia 19 de março quase todo mundo andou com o nariz espetado no céu, por conta do maior diâmetro aparente da Lua em dezoito anos. Até gente que nunca se interessa por fenômenos astronômicos tentou observar a Lua, ainda que só por curiosidade ou para não aparentar desinformação. Eu, como muitos outros, tive sérios problemas com as nuvens... Com isso, o melhor momento, quando nosso brilhante satélite "nasce", tornou-se inviável. Mais tarde, foi possível, e embora a parte mais interessante estivesse perdida, ainda assim foi um belo espetáculo.
Não há quem desconheça o fato de que, desde tempos remotos, os humanos olham o céu com admiração. Os incontáveis pontinhos luminosos avistados à noite, nos séculos em que a iluminação das cidades era inexistente, levaram a imaginação a voar, agrupando as estrelas em constelações. Hoje os nomes desses agrupamentos (Ursa, Cisne, Cruzeiro, Cão, Escorpião, Boieiro, Órion e por aí vai) parecem um pouco estranhos ao nosso universo habitual de símbolos, mas eram seguramente nomes muito evidentes para as pessoas e culturas de outras épocas.
Entretanto, leitor, nem sempre olhar e investigar o céu foi coisa tida como normal, honrosa e bem reputada. Já houve ocasiões em que, no mínimo, meter-se com assuntos celestes era, aos olhos das "pessoas normais", sinal claro de falta de juízo (sem falar nos distraídos, que viviam "no mundo da lua"), quando não se condenavam as pesquisas por, aparentemente, introduzirem heresias que ameaçavam perturbar a paz da cristandade. Ora, o curioso disso tudo é que tolices da astrologia que eram, então, consideradas parte da astronomia, não era questionadas, antes eram tidas como autêntica ciência, enquanto que investigações sérias que apontavam, por exemplo, a existência de irregularidades na superfície lunar, eram vistas como perigosas por questionarem a crença na "perfeição" dos corpos celestes. Se considerarmos os obstáculos que cérebros pensantes do passado como Copérnico, Kepler, G. Bruno ou Galileu  e muitos outros enfrentaram na busca por conhecimento autenticamente científico (como hoje o entendemos), chega a ser quase inacreditável que a humanidade tenha, finalmente, superado essa fase de obscurantismo que se afirmava em nome de crenças há muito estabelecidas mas, nem por isso, verdadeiras. Hoje bisbilhotamos o céu como queremos e chegamos a desenvolver o hábito de considerar certas liberdades de que desfrutamos como óbvias, mas é certo que nem sempre foram tão óbvias assim e, não o são ainda em muitos lugares, leitor - aqui da Terra mesmo, infelizmente, e não em algum outro planeta.


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domingo, 20 de março de 2011

Quem adivinha?

Tem ideia do que é e para que servia o objeto da foto abaixo, leitor?


Pois bem, trata-se de um tirador de amostras de café. Pertence ao acervo no Minimuseu do Café, no Vale do Ouro Verde, Serra Negra (SP). De acordo com o museu, esse objeto era utilizado quando, no momento da venda de uma safra de café, amostras do produto precisavam ser avaliadas.


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quinta-feira, 17 de março de 2011

Escravos que resistiam à escravidão - Parte 3

"Lasciate ogne speranza, voi ch'intrate'.
Queste parole di colore oscuro
vid'io scritte al sommo d'una porta."
Dante Alighieri, La Divina Commedia


O Padre Andreoni (ou Antonil) não era, como já disse em outra postagem, contrário à escravidão. Nem por isso tinha os olhos fechados para as aberrações que se cometiam no tratamento dos cativos que trabalhavam nos engenhos de açúcar. Por essa razão, aconselhou aos senhores de engenho que porventura viessem a ter contato com sua obra (¹):
"E bem é, que saibam que isto lhes há de valer: porque de outra sorte, fugirão por uma vez para algum mocambo no mato; e se forem apanhados, poderá ser que se matem a si mesmos, antes que o senhor chegue a açoitá-los, ou que algum seu parente tome à sua conta a vingança, ou com feitiço, ou com veneno."
Valem aqui algumas observações:
1) O medo de uma vingança por parte dos escravos, em particular por envenenamento, era quase uma paranoia entre os membros da camada senhorial (sobre isso, veja minha postagem anterior, Escravos que Resistiam à Escravidão - Parte 2);
2) Antonil publicou seu livro em 1711. Mais tarde, já independente, o Império do Brasil incluiria o envenenamento em seu Código Criminal como agravante em um crime de assassinato ou tentativa de assassinato;
3) Para o africano escravizado, a possibilidade de retornar à África era praticamente nula, daí ser a fuga para o interior e a vida em algum quilombo talvez a única maneira de escapar à brutal exploração de sua força de trabalho;
4) Atentos ao risco que as fugas e a formação de quilombos representavam ao sistema, os senhores eram zelosos em empreender a captura e a punição exemplar dos fugitivos;
Escravos recebendo castigo público, segundo Rugendas (²)
5) Se capturado, um escravo fugitivo muitas vezes preferia morrer a enfrentar a tortura, o que, no final das contas, acabava sendo um dano ao "proprietário", já que o "investimento" feito na compra desse escravo perdia-se completamente - o escravo vingava-se, é verdade, mas ao custo da própria vida. Não creio, no entanto, que a maioria dos escravos que cometia suicídio o fizesse para, deliberadamente, vingar-se do "dono". Era a total desesperança que os levava por esse caminho. Não, leitor, Dante nunca conheceu um engenho de açúcar ou fazenda de café (viveu muito antes disso), mas penso que não teria dúvidas em identificar esses lugares!
As fugas persistiram durante toda a vigência do regime escravista e, em alguns lugares, chegaram a ser mais frequentes à medida que o sistema de trabalho compulsório ruía. O caso é que os suicídios de escravos também continuaram a ocorrer. Concluo mencionando este, ocorrido em Santa Catarina no ano de 1866:
"Em Santa Catarina um preto escravo suicidou-se singularmente. Encheu a boca de pólvora e fê-la incendiar-se. A explosão fez com que ficasse espalhada no pavimento toda a massa cerebral contida no crânio do infeliz." (³)

(1) ANTONIL, A. J. Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas.
(2) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) Folhinha de Modinhas Para o Anno Bissexto de 1868. Rio de Janeiro: Antônio Gonçalves Guimarães e Comp., p 158.


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