terça-feira, 25 de maio de 2010

Apenas lembranças - Memórias de alunas de um colégio de antigamente

Tenho nas mãos um livro didático de História do Brasil destinado ao quarto ano ginasial, 18ª edição, 1947, em publicação da Companhia Editora Nacional, cujo autor é Joaquim Silva. Este exemplar, especificamente, foi usado por uma aluna  de um colégio confessional do interior de São Paulo, no ano letivo de 1948. Não fique preocupado, leitor, não pretendo dissertar sobre o conteúdo programático abordado no livro, nem eu tenho paciência para essas coisas. O que interessa neste meu livrinho são as anotações que sua jovem proprietária, bem como suas colegas de classe, nele fizeram, elas que faziam parte de uma geração cheia de entusiasmo e esperança, naqueles tempos do pós-guerra.
Por uma questão de ética, mantenho sigilo sobre o nome da estudante (aliás, já falecida), bem como sobre os de suas companheiras. Vou transcrever os recadinhos e recordações que deixaram para a amiga, assinalando apenas a inicial correspondente a cada "autora". Observo as caligrafias desenhadas com caneta-tinteiro, nas páginas já muito amareladas, e fico tentando decifrar o que iria pelas cabecinhas daquelas adolescentes. Vejamos:

"Sinta-se feliz, que a felicidade virá depois" da amiga A.

"Amor é uma flor roxa que nasce no coração dos trouxas" por isso não ame. Sua amiga I.

"O amor é como um cigarro, começa em chama e termina em cinza. Por isso pense antes de amar, porque depois é tarde." Sua colega B.

"Construir castelos no ar não é perder tempo, basta apenas colocá-los em alicerce." R.

"Muitas vezes o que é feio num jardim é belo no campo." Da amiga  e colega C.

"O motivo das nossas dores é que as almas não se transformem." Da amiga D.

"Cada minuto que passa, mais nos aproximamos da morte." S.

"Conhece-te a ti mesmo e verás que tens dentro de ti um tesouro inigualável." Da amiga M.

"Diga-me com quem andas que eu te direi quem és." G. (cuidado com as más companhias)

"O mundo será melhor e mais feliz porque eu vivo." Concretize essa frase e será feliz. Vencerá! V.

"É preferível morrermos de pé a vivermos de joelhos." Da colega M.

"A saudade é o fogo fátuo das venturas mortas." Sempre a amiga D.

"O amor é um punhal, com dois gumes fatais: quem ama sofre, quem não ama sofre mais ainda." C.

"O amor é o vinho e a mulher é a taça. Vem o homem insensato que serve o vinho e quebra a taça." Concretize essa frase e será muito feliz - sua colega E.

"Violeta, no jardim é flor. No campo, é a vaca do Antenor." Da amiga C.

Pode sorrir, leitor, depois desse banho de filosofia juvenil, espantosamente brotado em um austero colégio de religiosas, onde muitas meninas eram alunas internas. Que idade teriam? Talvez 14 ou 15 anos...
Mas não para por aí. Ao lado dos retratos dos "vultos da pátria", foram escritos nomes próprios masculinos - seriam eles os amados das mocinhas? Na página 76, sobre a reprodução do quadro "Batalha Naval de Riachuelo", de Vítor Meireles, lê-se "Internas 4ª Série", a lápis. O que é que isso poderia significar? Na página 99, ao lado do retrato da princesa Isabel, a dona do livro escreveu: "Z. aos 60 anos". Só mais uma: ao lado da biografia de Getúlio Vargas (p. 188) há uma conta subtraindo 1883, ano do nascimento de Getúlio, de 1948 (que era o ano corrente). E a estudantezinha de História do Brasil concluiu que Getúlio deveria ter 65 anos.
Nós nos divertimos com isso porque, mutatis mutandis, uma geração após outra de estudantes tem feito a mesma coisa. E, para provar que as coisas não mudaram muito, vale observar que na página 63 há uma anotação: "Primeira aula de História do Segundo Semestre, dia 13 de agosto de 1948, sexta-feira." Como o livro tem 213 páginas, posso conjecturar que dificilmente seu estudo terá sido concluído dentro do ano letivo. Para conforto de todos, as coisas não mudam muito, mesmo. Carpe diem. Horácio tinha toda razão.


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segunda-feira, 17 de maio de 2010

Preservação do patrimônio histórico: exemplo ruim, exemplo bom

Detesto quando alguém me diz: "Tenho duas notícias, uma boa e uma ruim. Qual você quer ouvir primeiro?"
Entretanto, leitor, vou fazer algo parecido. Tenho dois exemplos de preservação do patrimônio histórico para mostrar, um ruim e um bom, e vou contar a você nessa ordem porque, afinal, em uma perspectiva otimista, espero que o bom, vindo por último, tenha mais chance de perdurar.
Águas da Prata é uma adorável cidadezinha no interior de São Paulo, próxima à divisa com Minas Gerais. Como quase todo mundo sabe, é famosa pelas fontes de água mineral, pelo clima, pelas trilhas na mata, pelo bolo de milho...
Pois bem, como centro turístico que é, seria muito importante que seu patrimônio histórico merecesse toda a atenção. Seria. Placas por toda a cidade dizem que "preservar seus pontos turísticos é a medida da civilidade de um povo". Mas o caso é que, pelo menos no que se refere à estação ferroviária local, não é o que acontece.
Vamos começar pela placa de identificação do prédio. Veja você mesmo, leitor, e tire suas conclusões.


Antes de alguma outra coisa, o texto é de causar alergia instantânea em qualquer professor de português, por mais modesto que seja. Além disso, nele não consta a data de inauguração do trecho correspondente pela Companhia Mogiana de Estradas de Ferro - presumo que seja 1886, porque foi nesse ano que o ramal ligando Aguaí (então chamada Cascavel) a Poços de Caldas, em Minas Gerais, foi inaugurado, o que, incluiria, necessariamente, a passagem por Águas da Prata.


Tratemos agora do estado de conservação do prédio. Não preciso de muitas palavras, as fotos falam por si mesmas. E, para meu espanto, há no local uma outra placa, datada de dezembro de 2008, identificando-o como "Espaço Cultural de Águas da Prata". O mínimo que posso dizer é que já passou da hora de haver uma restauração decente, comandada por profissionais especializados, que deem à antiga Estação Ferroviária um aspecto capaz de orgulhar a população pratense, além de encantar os turistas.


Agora, leitor, o exemplo positivo de preservação do patrimônio histórico. Veja só a foto. Se você for um pouco mais velho, talvez isso lembre algo bom de sua infância, dos tempos da televisão em preto e branco.


A viatura, lindamente restaurada, está estacionada ao lado do posto da polícia rodoviária estadual, na saída de Águas da Prata em direção a São Paulo. Só por isso, já é uma tentação parar para fazer uma foto, mas vale acrescentar ainda o excelente atendimento do policial rodoviário de plantão. É bonito de se ver, para crianças e adultos, e obviamente contribui para fazer brilhar a imagem da polícia rodoviária junto à população.
Como eu disse, um exemplo ruim e um bom. Que o bom prevaleça.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

A história do suicídio de um escravo

Uma reflexão sobre senhores e escravos


Já faz muito tempo que ouvi contar esta história. A pessoa que me fez o relato também a ouviu, por sua vez, de quem dizia conhecer bem o lugar onde se deu o acontecimento, por aí ter vivido na infância. Pois bem, acho que já basta para evidenciar tratar-se de coisa antiga, da segunda metade do século XIX, talvez. Passou-se, segundo me foi contado, em uma fazenda de café no interior de São Paulo.
Um escravo (de cujo nome tento lembrar-me, mas não consigo, por mais que me esforce) recebeu a incumbência de abater e carnear um porco.  Durante a tarefa, tentou esconder um pedaço de carne em sua roupa, mas foi visto e denunciado, o que resultou em ser chamado para uma revista. Consciente do que isso significava, saiu em louca correria, tentando escapar do feitor e de outros homens, além dos cães da fazenda, que o perseguiam. Levava consigo a enorme faca que usara no trabalho.
Ora, passava um rio por aquelas terras e, em desespero, o  escravo atirou-se na água, tentando nadar o mais rápido que podia, mas conservando ainda, a duras penas,  a faca entre os dentes. Entretanto, a despeito de ser bom nadador, percebeu que inevitavelmente seria alcançado. Sem mais perda de tempo, cravou a faca no abdômen, ao mesmo tempo em que as águas do rio tingiam-se de sangue - o que significou, no final de tudo, um enorme prejuízo para o seu "proprietário", que perdeu um escravo jovem e forte. Vingava-se o escravo, é verdade, por tanta humilhação, mas vingava-se ao preço da própria vida. Foi com justiça que, em A Abolição, afirmou José Bonifácio que os escravos no Brasil estavam sob a legislação penal, mas não sob a proteção civil.
Obviamente, leitor, não tenho nenhum documento para comprovar a veracidade dessa história, mas há muitas outras, semelhantes, que estão registradas por autores confiáveis. Assim, não vejo razão para duvidar que ela possa, realmente, ter acontecido.
Se tivéssemos aqui uma dessas pirâmides socioeconômicas que já foram moda, os senhores de escravos estariam no alto dela, enquanto que os cativos, com toda certeza, estariam na base. No que se refere, porém, aos valores que fazem a real dignidade de um ser humano, as coisas bem poderiam ser diferentes. Jamais vi alguém estabelecer uma pirâmide de ética e decência, mas se existisse alguma, o escravo do qual sequer sabemos o nome estaria em posição mais elevada que seu brutal e estúpido senhor. O que nos leva à inevitável conclusão de que é melhor morrer lutando para ser livre, do que permanecer acorrentado pacificamente, mesmo com vida longa. O escravo de nossa história compreendia plenamente o quanto isso é verdade.


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terça-feira, 27 de abril de 2010

Primeira ponte de concreto armado do Estado de São Paulo completa 100 anos

Inaugurada em 3 de maio de 1910, a primeira ponte de concreto armado construída no Estado de São Paulo está prestes a completar cem anos. E, é bom acrescentar, em pleno uso, como as fotos demonstram.



A ponte, com 28 metros de comprimento, está localizada na cidade de Socorro, possibilitando a passagem sobre o Ribeirão dos Machados. Foi construída pela Companhia Mogiana de Estradas de Ferro para facilitar o acesso à estação ferroviária de Socorro que, ao contrário do costume da época, estava algo distante do centro da cidade. Longa vida à ponte!

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Tiradentes - desmi(s)tificando a desmi(s)tificação do mito

Uma reflexão sobre a figura de Tiradentes como herói da Independência do Brasil


Na Antiguidade, os gregos tinham seus heróis, tais como Hércules, Aquiles, Perseu e outros mais, que se diferenciavam dos deuses porque, ao contrário desses últimos, eram mortais (Hércules tornou-se uma exceção, é verdade, mas isso não invalida a regra). A explicação era simples: os heróis eram filhos de um deus com uma mortal. Portanto, a praga da mortalidade também os alcançava, embora fossem capazes, por sua origem semidivina, de realizar feitos espetaculares, normalmente vedados aos humanos "comuns". Assim como os deuses, tinham defeitos de caráter bem parecidos com os dos homens, não faltando quem tecesse críticas a essas crenças, no sentido de considerá-las desastrosas para a educação dos jovens. É o que podemos ver, por exemplo, na República, de Platão, o que não impediu que tanto deuses como heróis continuassem a ser objeto da religiosidade para a maioria dos gregos.
Entretanto, leitor, no Brasil as coisas são muito diferentes! O País foi descoberto por acaso (não vale a pena perder tempo com essa discussão), Tiradentes era apenas um falastrão incompetente, D. Pedro I, um mulherengo e governante incapaz. Ou seja, nada de heróis! Viva a mediocridade, mesmo porque ela não tem o mau hábito de incomodar a concorrência.
Se você já tentou entender a causa de tanto amor pelo andar na contramão, talvez tenha pensado que seja influência do pensamento marxista (vide O 18 Brumário de Luís Bonaparte). Discordo, embora reconheça que há, por aqui, um certo costume de transformar citações descontextualizadas de Marx em algum tipo de categoria axiomática, impossibilitando qualquer discussão ou questionamento, o que é, por suposto, um absurdo, pois vai contra a própria essência do marxismo. O problema, a mim me parece, é outro, é a ideia de que é preciso negar tudo o que é brasileiro, transformando em verdadeira questão de honra a suposta necessidade de "desmi(s)tificar o mito". Vejamos, como exemplo, o caso de Tiradentes, já que estamos perto da data comemorativa de sua execução.
Tem-se dito que o Alferes de Minas Gerais só veio a ser proposto como herói no calor da agitação política que, em fins do período imperial, propunha a mudança de regime, sendo necessário levantar um nome que sintetizasse as aspirações do movimento republicano. E isso poderia até parecer verdade, bastando dar uma olhada na letra do Hino da República ("Se é mister que de peitos valentes haja sangue no nosso pendão / Sangue vivo do herói Tiradentes batizou esse audaz pavilhão"), não fosse o caso de que os fatos demonstram o contrário.
O primeiro partido republicano brasileiro, o P.R.P. (*), foi formalmente estabelecido em abril de 1873. Pois em 25 de abril de 1865 (oito anos antes, portanto), em artigo publicado no Diário do Rio de Janeiro, Machado de Assis defendia a inclusão de Tiradentes entre os heróis nacionais e, mesmo reconhecendo a característica republicana da Inconfidência Mineira, apelava ao espírito esclarecido do Imperador D. Pedro II, para que o único a pagar com a vida em 1792, por ter-se metido com ideais de independência, fosse homenageado, tanto quanto D. Pedro I ou José Bonifácio. Fica assim demonstrado que o mito de Tiradentes não foi inventado pela campanha republicana. Fica demonstrado que Tiradentes não havia sido simplesmente esquecido depois de sua execução.
Mas não paramos por aqui. É voz corrente entre a população de Congonhas do Campo (Estado de Minas Gerais) que Antônio Francisco Lisboa teria se inspirado na fisionomia de Tiradentes para esculpir o rosto de Jesus para as capelas da Via Sacra em Bom Jesus de Matosinhos, obra executada, é bom que se diga, entre 1796 e 1799, quando os acontecimentos relacionados à Inconfidência ainda deviam estar nítidos na memória de seus contemporâneos. Isso poderia explicar a frequente associação da imagem de Jesus com a de Tiradentes, a que muitos se referem no sentido de descaracterizar o "mito". Pois sim, pode-se ter aí apenas crendice popular, é forçoso admitir. Mas, em uma das capelas, a belíssima escultura de Cristo tem um detalhe singular: uma mancha de sangue ao redor do pescoço. Ora, Jesus não foi enforcado e sim crucificado. Tiradentes foi enforcado. Como sempre digo, leitor, a decisão é sua. Eu apenas lhe dei ferramentas para refletir sobre o assunto.
Não é minha intenção defender a construção idealizada, para não dizer irresponsável, de determinadas personagens, como já se tem visto, quase sempre com fins políticos. Não é preciso inventar - a pesquisa histórica existe justamente para assegurar uma perfeita ancoragem em fatos reais. Entretanto, talvez devamos aprender com os antigos gregos a valorizar as ações significativas, ao mesmo tempo em que concedemos aos heróis modernos o direito de se mostrarem autenticamente humanos e, por isso mesmo, imperfeitos, como todos nós. Vale ainda ponderar que, se os heróis são ruins, incapazes de expressar valores nacionais, será melhor substituí-los por gente mais adequada. Quem acha que Tiradentes e outros  mais não passam de figuras prosaicas deve, obrigatoriamente, apresentar outros candidatos à função, e isso por uma razão muito simples: não sendo possível encontrar substitutos à altura, segue-se que, provavelmente, não há brasileiros dignos desse posto. E com isso eu jamais poderia concordar.

(*) Partido Republicano Paulista.


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terça-feira, 13 de abril de 2010

Grandes mudanças ocorridas ao longo do Século XX

Minha postagem anterior ("Quem se Importa com Animais e Escravos que Fugiram?") causou certo impacto em alguns leitores. Compreende-se. É chocante verificar o quanto a escravidão, aparentemente tão distante e, ao mesmo tempo, tão perto de nós, pode bestializar os seres  humanos (e, nesse caso, trato especificamente de muitos dos homens livres), fazendo crer que o fato de alguém declarar-se proprietário da vida de outro alguém é coisa perfeitamente normal. O lamentável é que essa mentalidade está longe de ter desaparecido completamente, apresentando desdobramentos julgados impensáveis, mesmo nos dias atuais. Entretanto, a bem da parcela mais jovem que acessa este blog, assinalarei alguns aspectos que faziam o mundo da virada do século XIX para o XX tão diferente deste em que vivemos, no início do século XXI.

1. Não deve espantar a ninguém que mulas, cavalos e burros circulassem livremente na cidade de São Paulo em 1867, já que o automóvel, como o conhecemos, é invenção de cerca de 1885, tendo sua produção em série começado só em 1908, nos Estados Unidos. Portanto, leitor, é óbvio que equinos e muares tinham, na época, emprego garantido. Foi apenas em 1872 que São Paulo passou a contar com bondes... Puxados por burros!

2. A limpeza pública de fins do Século XIX e início do XX encontrava importantes auxiliares nas saias das senhoras que, gratuitamente, ajudavam a varrer as ruas. Fique sabendo, leitor, que para confeccionar tais peças de vestuário eram necessários vários metros de tecido. O uso de calças pelas mulheres estava ainda distante, embora na França, por exemplo, a legislação autorizasse seu uso para aquelas que montavam ou pedalavam. A popularização de calças para mulheres ocorreu, efetivamente, após a Segunda Guerra Mundial, por obra, em grande parte, do que se via nas telas dos cinemas.

3. Pergunte aos seus parentes mais idosos e eles confirmarão o que digo: as famílias antigas eram muito numerosas. E como seria diferente? O chamado Método Ogino-Knaus (vulgo "tabelinha") é coisa dos anos vinte do Século XX, e, até que sua divulgação atingisse o grande público, passou-se muito tempo. Pílula anticoncepcional, como experimento viável, surgiu no início dos anos 50. Foi liberada para uso na Alemanha em 1961 e, nos Estados Unidos, popularizou-se ao longo da década de 60.

4. Piadinhas à parte, televisão é coisa mais ou menos recente. Excetuando-se  a famosa transmissão da abertura das Olimpíadas de Berlin em 1936, assistir TV é coisa, mesmo nos países mais desenvolvidos, do período pós-Segunda Guerra. Só como curiosidade, a primeira transmissão no Brasil teria ocorrido em 1948 e nela  mostrou-se, claro, uma partida de futebol.

5. Para terminar, a Internet, como hoje a entendemos, data dos anos 90, embora usos militares e científicos da rede já tivessem, então, certa quilometragem. Ah, www, só em 1991.

 Vê-se que o tal "mundo de hoje" é, sob muitos aspectos, bem diferente do de, quem sabe, cento e poucos anos atrás. Aposto que um eventual visitante do século XIX, que chegasse hoje à Terra (se isso fosse possível), imaginaria, muito provavelmente, estar em outro planeta. Em nenhuma outra época da História humana as mudanças foram tão profundas e, simultaneamente, tão aceleradas. Algumas dessas mudanças foram, por suposto, muito boas, enquanto, outras, nem tanto. Resta saber se nós, como pessoas, ficamos melhores. Julgue você mesmo, leitor.


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quarta-feira, 7 de abril de 2010

Quem se importa com animais e escravos que fugiram?

Eu poderia ter levantado os dados em muitos outros jornais da época, mas escolhi este pela facilidade do acesso ao acervo digitalizado do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Trata-se da edição de terça-feira, 5 de fevereiro de 1867 do Correio Paulistano. Como na maioria dos jornais, há uma seção, nesse caso na página 4, dedicada a anúncios, e dois deles chamam a atenção - estão bem próximos, quase ao lado um do outro.
Vejamos o primeiro. Trata-se de um animal de carga que fugiu e que o dono deseja recuperar, oferecendo uma recompensa. Transcrevo o texto, na ortografia atual:
"BESTA FUGIDA
50$ DE GRATIFICAÇÃO
Fugiu de um pasto da freguesia do Brás uma besta grande e nova, ferrada dos quatro pés, de cor vermelha, tem sinais de pisadura sobre o lombo, e as orelhas muito grandes que costuma derrubar, dá pelo nome de Boneca, e é muito mansa.
Quem achar e levar à rua nova de S. José n. 1 será gratificado com a quantia acima."
Está aí uma leitura altamente edificante para quem acha que "as coisas são como sempre foram". Ajuda a refletir sobre o modo de vida em São Paulo no século XIX. Mas não é essa a razão pela qual transcrevo o texto. Vamos ao segundo anúncio que, como já disse, aparece na mesmíssima página de jornal, quase ao lado do primeiro:
"ESCRAVO FUGIDO
Gratifica-se generosamente a pessoa que apreender o escravo mulato de nome Belisário, pernambucano ou baiano, idade 20 anos, principiando a buçar, e poucos fios de barba, tem um sinal branco no tornozelo do pé esquerdo.
Este escravo fugiu de Itu a José Galvão de França Pacheco Junior no dia 25 de janeiro próximo passado, e foi encontrado no dia 29 na Varginha em direção para São Paulo, trazendo camisa de chita e calça de casimira, e cobertor francês branco. Poderá ser entregue em Itu ao dito José Galvão ou em São Paulo aos senhores Redondo e Coelho na Rua do Comércio n. 42, que se satisfará a gratificação."
Imagino que você, leitor, esteja estarrecido diante das semelhanças entre os dois anúncios, como nome do fujão, referências à idade, sinais particulares e o oferecimento de uma recompensa. No caso do escravo, era importante classificá-lo como baiano ou pernambucano, pois o tráfico de africanos, proibido "de mentirinha" em 1831, fora efetivamente banido em 1850. Fica evidente que, para muitos dos contemporâneos, animais de carga e humanos escravizados eram mais ou menos a mesma coisa, ou seja, máquinas de trabalhar, que constituíam propriedade de alguém e cuja fuga, portanto, representava prejuízo. Daí estipular-se uma recompensa, a fim de favorecer a captura e a devolução.
É fato notório que este não foi um caso isolado. Quem se der ao trabalho de pesquisar em outros jornais encontrará uma chuva torrencial de anúncios semelhantes, ensejando a óbvia constatação de que a prática de assemelhar escravos a bestas de carga de modo algum ofendia a opinião pública. Para dizer bem claramente, as pessoas estavam acostumadas a isso. Chegamos, portanto, à reflexão final: hoje, o tratamento desumano dispensado aos escravos nos parece uma aberração, mas não estaremos nós, em nossos dias, tolerando absurdos  tão grandes quanto e  aos quais nos acostumamos ao ponto de termos perdido a capacidade de reconhecê-los?


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