quarta-feira, 5 de maio de 2010

A história do suicídio de um escravo

Uma reflexão sobre senhores e escravos


Já faz muito tempo que ouvi contar esta história. A pessoa que me fez o relato também a ouviu, por sua vez, de quem dizia conhecer bem o lugar onde se deu o acontecimento, por aí ter vivido na infância. Pois bem, acho que já basta para evidenciar tratar-se de coisa antiga, da segunda metade do século XIX, talvez. Passou-se, segundo me foi contado, em uma fazenda de café no interior de São Paulo.
Um escravo (de cujo nome tento lembrar-me, mas não consigo, por mais que me esforce) recebeu a incumbência de abater e carnear um porco.  Durante a tarefa, tentou esconder um pedaço de carne em sua roupa, mas foi visto e denunciado, o que resultou em ser chamado para uma revista. Consciente do que isso significava, saiu em louca correria, tentando escapar do feitor e de outros homens, além dos cães da fazenda, que o perseguiam. Levava consigo a enorme faca que usara no trabalho.
Ora, passava um rio por aquelas terras e, em desespero, o  escravo atirou-se na água, tentando nadar o mais rápido que podia, mas conservando ainda, a duras penas,  a faca entre os dentes. Entretanto, a despeito de ser bom nadador, percebeu que inevitavelmente seria alcançado. Sem mais perda de tempo, cravou a faca no abdômen, ao mesmo tempo em que as águas do rio tingiam-se de sangue - o que significou, no final de tudo, um enorme prejuízo para o seu "proprietário", que perdeu um escravo jovem e forte. Vingava-se o escravo, é verdade, por tanta humilhação, mas vingava-se ao preço da própria vida. Foi com justiça que, em A Abolição, afirmou José Bonifácio que os escravos no Brasil estavam sob a legislação penal, mas não sob a proteção civil.
Obviamente, leitor, não tenho nenhum documento para comprovar a veracidade dessa história, mas há muitas outras, semelhantes, que estão registradas por autores confiáveis. Assim, não vejo razão para duvidar que ela possa, realmente, ter acontecido.
Se tivéssemos aqui uma dessas pirâmides socioeconômicas que já foram moda, os senhores de escravos estariam no alto dela, enquanto que os cativos, com toda certeza, estariam na base. No que se refere, porém, aos valores que fazem a real dignidade de um ser humano, as coisas bem poderiam ser diferentes. Jamais vi alguém estabelecer uma pirâmide de ética e decência, mas se existisse alguma, o escravo do qual sequer sabemos o nome estaria em posição mais elevada que seu brutal e estúpido senhor. O que nos leva à inevitável conclusão de que é melhor morrer lutando para ser livre, do que permanecer acorrentado pacificamente, mesmo com vida longa. O escravo de nossa história compreendia plenamente o quanto isso é verdade.


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