terça-feira, 29 de novembro de 2011

A alimentação dos indígenas do Brasil, segundo Hans Staden

Feito prisioneiro dos índios tupinambás (veja postagem anterior), Hans Staden foi amarrado e levado até a aldeia em que moravam. A partir daí, aguardando uma execução (seguida de antropofagia) que acabou não acontecendo, foi tomando contato com os hábitos de seus captores, hábitos aos quais, por mais estranhos que lhe parecessem, precisava adaptar-se, se queria ter alguma chance de sobrevivência. Posteriormente, ao regressar à Europa, Hans Staden deixou em um livro um registro valioso (¹) sobre as práticas quotidianas dos nativos, incluindo, naturalmente, o que se referia à alimentação.
Cabe aqui, antes de dar prosseguimento ao assunto, fazer uma observação importante: o Brasil tinha e tem uma grande diversidade de povos indígenas e, por conseguinte, de acordo com a região em que se estabeleceram, há também variação de tradições. Por isso, o que se dirá refere-se especificamente aos costumes dos indígenas do litoral brasileiro, em particular os que habitavam, no século XVI, o que hoje são os Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, embora alguns de seus hábitos fossem partilhados com outros povos do interior. Isto estabelecido, vejamos o que registrou o famoso prisioneiro.
Na mesma hora em que chegava pela primeira vez à aldeia, Hans Staden viu as mulheres trabalhando em uma plantação, da qual colhiam as raízes - era a mandioca, conforme os leitores já devem ter imaginado e, pelo que se infere do relato, consistia no principal artigo cultivado para alimentação. Outros alimentos provinham da caça e da pesca, razão pela qual os indígenas, ao saírem às matas, iam sempre armados de seus arcos e flechas, sendo extremamente habilidosos em seu manejo, de modo que um animal, uma vez avistado, dificilmente lhes escapava.
Pescaria indígena com arco e flecha, gravura da
obra de Hans Staden Zwei Reisen nach Brasilien
Já a pesca podia seguir dois métodos distintos, um com arco e flechas, outro com rede. No primeiro caso, pescava-se à beira-mar (o que nos informa, discretamente, sobre a quantidade de peixe ali existente na época) e, sendo um peixe asseteado, o índio mergulhava em seu encalço, até trazê-lo à superfície. A pesca com rede, no entanto, era comunitária: entravam na água, formando um círculo e fazendo movimentos de modo que os peixes acabassem dentro da rede. Vale salientar que, nesse caso, o produto da pescaria era repartido entre todos os participantes, igualmente.
Quanto ao preparo dos alimentos, Hans Staden refere que as mulheres cozinhavam carne ou peixe e temperavam com pimenta verde e, desses ingredientes, faziam mingaus (²). Registre-se aqui que esse não era o único tipo de mingau que faziam. Para conservar a mandioca ou o peixe por mais tempo, assegurando um suprimento de comida para tempos de escassez ou mesmo para viagens, como as que se faziam em tempo de guerra, era usual a preparação de farinha, além de já conhecerem uma técnica para defumar: carne e/ou peixe, fixados em varas, eram colocados sobre fogueiras, aí permanecendo para receber tanta fumaça quanto possível, até que secassem. Posteriormente, quando desejavam consumir o que fora defumado, colocava-se em água para ferver.
Eis aqui uma síntese do que Hans Staden observou em seus dias como prisioneiro. É claro que poderíamos incluir na dieta indígena os frutos que eram coletados nas matas, mas isso era algo de que se serviam apenas na estação apropriada de maturação de cada espécie.

(1) STADEN, Hans. Zwei Reisen nach Brasilien. Marburg: 1557.
(2) Veja, sobre isso, a postagem: "Uma receita inusitada de mingau".


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domingo, 27 de novembro de 2011

De que se alimentavam os colonizadores recém-chegados e os náufragos no Brasil

Depois de semanas ou meses no mar, os colonizadores finalmente chegavam às terras do Brasil. O que os esperava? Certamente não uma boa acolhida em uma estalagem confortável (lembre-se, era o século XVI) e, dependendo da localidade e da ocasião, não havia nem mesmo um teto sob o qual descansarem. A embarcação, para que não encalhasse, ficava a uma boa distância no mar, enquanto os novos colonos eram levados à praia em batéis. Com sorte, encontrariam água, frutos e caça. As primeiras povoações demoraram a desenvolver-se e, por isso, quem vinha ao Brasil, fosse de livre vontade ou em virtude de uma sentença de degredo, já sabia que os primeiros tempos seriam muito difíceis.
Se, em lugar de um desembarque, a chegada à costa era consequência de um naufrágio, a situação podia ser ainda pior. O colono que desembarcava podia trazer consigo alguns pertences, ferramentas e mesmo alguns suprimentos; já os náufragos, estavam longe de ter essa possibilidade, ainda que, em alguns casos, conseguissem salvar alguma coisa da embarcação perdida.
Temos, a respeito, o testemunho de Hans Staden (¹) e, como ele, muitos outros que não eram portugueses devem ter vindo parar na costa da América (²). Conta-nos que, estando em uma embarcação espanhola para a qual fora contratado como artilheiro, chegaram, segundo registro do piloto, a 28º Sul, o que nos indica estarem no litoral de Santa Catarina, tendo desembarcado em uma ilha (seria a de mesmo nome?). Ali, depois de fazerem fogo, derrubaram uma palmeira, da qual tiraram o palmito, que era uma novidade para muitos europeus e do qual, nos registros da época, encontramos descrições atribuindo-lhe os mais variados sabores.
A situação desses navegantes, entretanto, piorou, de modo que, nos cerca de dois anos e meio que ali permaneceram, foram obrigados a alimentar-se de coisas que lhes pareciam abomináveis: ratos silvestres, lagartos, mariscos, enfim, aquilo que encontravam, mesmo porque, ainda segundo o relato de Hans Staden, os índios, que inicialmente tinham "cooperado", deixaram de fazê-lo e desapareceram quando as poucas mercadorias que tinham para escambo acabaram. Melhor situação encontraram em outra ilha onde havia uma grande colônia de alcatrazes que, conta-nos, eram fáceis de capturar. Com isso, tiveram carne e ovos.
Finalmente, conseguiram sair dali, mas naufragaram próximo a São Vicente e o nosso informante acabou contratado para trabalhar na defesa da área ocupada por portugueses, fato que lhe resultaria em terríveis problemas, ao ser capturado por tupinambás. Mas é desse tempo no qual serviu na fortaleza lusitana que deixou uma informação que muito nos interessa, por dar uma ideia do que cabia aos recém-chegados colonizadores em termos de alimentação. Mencionando ter um escravo carijó que lhe trazia caça, Staden conta que, no Brasil, não havia muito mais alimento senão aquilo que se achava no mato. É fácil compreender que o confronto permanente com os nativos dificultava, senão impedia completamente, o estabelecimento de lavouras que, afinal, nem poderiam mesmo ser muito extensas, na estreita faixa de terra existente entre o Oceano Atlântico e a Serra do Mar.

(1) STADEN, Hans. Zwei Reisen nach Brasilien. Marburg: 1557.


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quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Peru de Ação de Graças, peru do Natal


Deixar o lar na Europa e ir estabelecer-se em terras desconhecidas na América do Norte era uma enorme aventura, quase uma temeridade, nos anos vinte do século XVII. Entretanto, os chamados "pais peregrinos" o fizeram, e deviam ter bons motivos para isso - entre eles, fugir da perseguição religiosa que vinham enfrentado.
Ora, leitor, o primeiro ano na América foi terrível. Ao final dele (1621), entretanto, os sobreviventes resolveram agradecer pelo que tinham, fundando a prática do Dia de Ação de Graças, celebrado anualmente nos Estados Unidos. Em círculos mais restritos, comemora-se também no Brasil e em muitos outros lugares.
Pois bem, para festejar a data, esses colonos lançaram mão do pouco que havia, produto de suas colheitas ou caça disponível, e é aí que entraram em cena os perus: perus selvagens, aves nativas da América, desde o México até o Canadá, a ponto de, infelizmente para elas, virarem símbolo da data.
Na Europa, há suficientes evidências de que, trazidas pelos primeiros exploradores, os perus já eram conhecidos desde o século XVI e, sendo domesticadas, essas aves fizeram enorme sucesso devido à carne, considerada excelente.
No Brasil os perus foram, gradualmente, incorporados às tradições das festas de dezembro, Natal e Ano Novo. E, para se ter uma ideia do valor atribuído a essas aves (pior para elas, mais um vez), há vários registros de preços praticados em São Paulo em diferentes épocas. Temos os valores de outros itens de consumo, para efeito de comparação:

Em 1685:

Dúzia de ovos......................................................10 réis
Um pato................................................................40 réis
Uma perua...........................................................160 réis

c. 1700:

Um casal de pombos........................................160 réis
Três peruas e um peru.....................................640 réis (¹)

Um outro registro, de 1886, aponta os seguintes preços (²):

Quilograma de carne bovina, em média........................... 320 réis
Dúzia de ovos........................................................................ 500 réis
Uma galinha........................................................................... 650 réis
Um peru.................................................................................. 5.000 réis

Deve-se considerar que a enorme variação de preços tem, entre outras causas, a inflação decorrente da descoberta das minas de ouro nas Gerais e, mais tarde, em Goiás e Mato Grosso, disso decorrendo uma elevação sensível na demanda por suprimentos para os que viviam e trabalhavam nas lavras.


(1) Cf. TAUNAY, Affonso de E. História da Cidade de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 108.
(2) Ibid., p. 346.


Anúncio de ovos de peru, Revista A Cigarra, edição de
1º de agosto de 1914

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terça-feira, 22 de novembro de 2011

O contrabando de pau-brasil e a expedição de Martim Afonso de Sousa

Firmado entre Portugal e Espanha, o Tratado de Tordesilhas (1494) foi, desde sempre, descumprido, como já se disse na postagem anterior, tanto pelas próprias partes acordantes como por quem não fora incluído nessa "partilha do mundo". Assim, o governo português, ainda que sumamente envolvido com as questões na navegação das Índias, precisou logo entender-se também com o problema da presença de contrabandistas, em especial do precioso pau-brasil, ao longo da costa da então chamada Terra de Santa Cruz. Não havia, para isso, muitas alternativas, desde que se pretendesse conservar para Portugal a posse de terras na América.
A chamada Expedição de Martim Afonso de Sousa, enviada a mando do rei D. João III, que percorreu o litoral brasileiro entre 1530 e 1532, não foi, muito provavelmente, a primeira no gênero, já que muito antes várias expedições, geralmente financiadas por particulares, tiveram permissão oficial para vir ao Brasil buscar madeira e outras mercadorias. Foi, entretanto, a primeira, ao que se sabe, a dar uma ideia mais completa do que era toda a extensão da costa do Brasil, extensão que, para as possibilidades de colonização de um país pequeno, como Portugal, devia parecer monstruosa.
Como existe dessa expedição o Diário da Navegação, anotado por Pero Lopes de Sousa, irmão do Capitão Martim Afonso de Sousa, sabemos que, desde logo, evidenciou-se que franceses estavam "fazendo a festa", ao estabelecerem relações comerciais com vários grupos indígenas, fato que possibilitava chegar, carregar pau-brasil e sumir, em seguida, na vastidão do oceano, rumo à Europa. As poucas embarcações francesas que eram abordadas por portugueses eram, sem sombra de dúvidas, apenas uma pequena fração da totalidade que fazia o contrabando, se quisermos assumir aqui o ponto de vista lusitano na questão.
É possível ler no  Diário da Navegação algumas informações bem interessantes do que ocorria quando uma embarcação francesa era vista a uma distância suficientemente curta para ser abordada:
"Como fomos dela um tiro de bombarda se meteu a gente toda no batel e fugiu para a terra. Mandou o capitão a Diogo Leite, capitão da caravela Princesa, que fosse com seu batel após o batel da nau; quando já chegou a terra, era já a gente metida pela terra dentro, e o batel quebrado. Fomos à nau, e nela não achamos mais que um só homem: tinha muita artilharia e pólvora, e estava toda abarrotada de brasil."
Daí por diante o Diário vai mencionando vários outros desses encontros, dos quais, vez por outra, resultava uma pequena batalha no mar. Mas os franceses iam além, não se restringindo a fazer comércio com os nativos. Ousavam atacar feitorias já estabelecidas por portugueses, como se vê neste relato:
"... e me disseram que foram ao rio de Pernambuco, e como havia dois meses que ao dito rio chegara um galeão de França, e que saqueara a feitoria e que roubara toda a fazenda que nele estava de el-Rei nosso senhor."
Um fato curioso, no entanto,  é que, neste tempo, ao menos ao longo da costa do Brasil, reinava alguma solidariedade entre portugueses e espanhóis, quando eventualmente vinham a encontrar-se, talvez porque não se soubesse, exatamente, por onde passava a tal linha de Tordesilhas... Tanto assim, que Martim Afonso mandou seu irmão e vários outros navegantes a explorarem a foz do Rio da Prata, o que nos faz crer que o propósito fosse, em última instância, bisbilhotar sobre alguma rota para as riquíssimas minas de prata que, sabidamente, estavam em território espanhol - uma evidência de que as questões de limites e de quem seria dono de que parte da América estavam muito longe de uma solução. Como se sabe, esse assunto ainda duraria séculos, persistindo mesmo após a independência das possessões coloniais na América do Sul.


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domingo, 20 de novembro de 2011

Mercadorias que eram contrabandeadas do norte da África no Século XVI

Quem acha que o Tratado de Tordesilhas resolveu todas as questões sobre a posse de terras descobertas por navegadores a serviço de Espanha e Portugal está certamente enganado. Nem sequer havia certeza sobre o ponto de onde deveriam ser contadas as terras de um e outro reino e, em consequência disso, o comércio e mais atividades que se empreendiam por via marítima no século XVI eram, em grande parte, regidos pela lei daquele que, em dada circunstância, estivesse em maior número e com melhores armas.
Na edição de Marburg de
Zwei Reisen nach Brasilien 
esta gravura
ilustra o episódio da captura do

navio contrabandista no norte da África
Há um episódio relatado por Hans Staden (*) que ilustra bem este ponto. Conta que, tendo iniciado sua primeira viagem a partir de Lisboa, foram, ele e os demais de seu navio, inicialmente ao arquipélago da Madeira e, depois, à costa da África. Cabe aqui explicar que o alemão havia se alistado como artilheiro em uma embarcação portuguesa que devia reprimir o comércio de não-portugueses com os mouros do norte da África, além do contrabando, principalmente de pau-brasil, por parte de navios franceses que vinham à América.
Pois bem, foi no norte da África que encontraram um navio a fazer comércio com os chamados mouros e, tendo-o abordado, puseram em fuga os tripulantes, assim como os mouros que, de terra, queriam defender seus parceiros de negócios. Constatou-se então que os proprietários da embarcação "contrabandista" eram, ao menos em parte, de origem espanhola. O que mais nos interessa, porém, é a lista apresentada por Hans Staden das mercadorias que levavam, o que serve para nos dar uma excelente ideia quanto a que coisas eram consideradas valiosas o bastante nesse tempo para que se corresse o risco de um confronto que poria tudo a perder, como aliás, ocorreu neste caso.
Menciona ele que o navio capturado transportava tâmaras, amêndoas, goma arábica, couros de cabra e açúcar, carga que foi deixada na Ilha da Madeira enquanto o navio português, no qual Hans Staden era artilheiro, seguia viagem rumo ao Brasil, não porque se quisesse, mas porque, como ele próprio diz, um vento muito forte, que soprou à noite pela véspera de Todos os Santos (que é 1º de novembro), os empurrou, levando-os rumo a Pernambuco. Terrível a situação desses navegadores do século XVI, quando apenas se sabia aonde se queria ir, sem nunca ter certeza de onde de fato se ia chegar.

(*) STADEN, Hans. Zwei Reisen nach Brasilien. Marburg: 1557.


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quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Animais que aterrorizavam a imaginação dos colonizadores do Brasil (Parte 3): Piranhas!

"E rio abaixo, lá ia o fervedouro sanguinolento denunciando o martírio do animal, lançado, como tributo da boiada, aos cardumes vorazes das piranhas.
Os vaqueiros olhavam as águas trágicas onde os peixes borborinhavam e um tangerino moço, condoído do velho boi, suspirou:
- Coitado!"
                                                                                      Coelho Neto, Boi de Piranha in Vesperal

Elas nadam gentilmente quando não estão a atacar alguma presa e, para os incautos, a água dos rios e áreas alagadas em que habitam parecem "normais". No entanto, se são poucas, já representam algum perigo. Mas se forem muitas... É melhor nem pensar. São piranhas, peixes de dimensões aparentemente desprezíveis, mas os cardumes existentes em muitos cursos d'água Brasil afora impõem terror hoje, tanto quanto no passado. Muitos autores referiram-se a elas como criaturas assassinas, capazes de consumir um boi ou outro mamífero em pouquíssimo tempo, desde que reunidas em grandes cardumes. Infelizmente para os colonizadores do Brasil, cardumes eram a regra, não a exceção.
Alguns dos melhores relatos vêm, no entanto, de dias posteriores aos da colonização portuguesa. Há, por exemplo, a breve descrição do Padre Ayres de Casal (1817):
"[...] piranhas, que são curtas e largas, com dentes agudíssimos, e fatais a todo o vivente que podem alcançar." (¹)


O melhor informe que conheço, todavia, é de Hércules Florence. Transcrevo-o quase na íntegra, para que meus leitores, que porventura sejam seres urbanos e, por isso, inexperientes nessas questões silvestres, aprendam úteis lições. Diz ele, referindo-se à ocasião em que a Expedição Langsdorff percorria o Brasil Central, em área da bacia do rio Paraguai:
"Começamos a pescar piranhas, peixe abundante no Paraguai e seus tributários. Nos rios que vão ter ao Amazonas os há também, assim como nos de Minas Gerais, mas pululam nos lagos e campos inundados do Paraguai. Não têm mais de oito polegadas de comprido e seis de largo, entretanto é o mais temível de todos os peixes desses rios pela voracidade com que acomete todo e qualquer animal que caia dentro d'água. Têm dentes agudíssimos, na disposição e dimensões [...]." (²)
Adverte em seguida:
"Ai do imprudente que entrar nu em lugar infestado por aqueles vorazes habitantes; está perdido, sobretudo se tiver no corpo alguma ferida ou sarna. Eles se precipitarão sobre as chagas; farão verter sangue e em poucos instantes o infeliz perderá a vida." (³)
Assustador? Há mais:
"Quando a gente se banha em lugar de poucas piranhas, o perigo é diminuto, mas assim mesmo é preciso ter o cuidado de cobrir com as mãos as partes pudendas, porque por aí é que elas atacam de preferência. [...]." (⁴)
Então, deixando evidente que não estava discorrendo sobre uma fábula, Florence conta dois casos que presenciou e, sendo esse autor bastante confiável, não me parece haver razão para duvidar dele:
"Para dar ideia da multidão e voracidade desses animais, bastar-me-á contar o seguinte caso. Havendo um dos nossos camaradas caçado um macaco e querendo moqueá-lo, pôs-se a limpá-lo e em seguida o mergulhou no rio. Sacou-o porém depressa, com cinco piranhas atracadas à carne e que foram cair na proa da canoa. De cada vez que repetia a imersão, tirava d'água quatro ou cinco peixes, de modo que num instante contamos sessenta, pescados por modo que muito nos divertiu.
Jogou-se ao rio um corpo esfolado de capivara. Foi um espetáculo curioso. As piranhas, num formigar e torvelinho que faziam borbulhar e espadanar as águas, o espicaçaram, ora atirando-o para o ar, ora puxando-o para o fundo.
À medida que o sangue se espalhava, acudiam outras aos milhares, e em breve nada restou daquela presa." (⁵)


(1) AYRES DE CASAL, Manuel. Corografia Brasílica, 1ª ed., vol. 2, 1817, p. 187.
(2) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, pp. 86 e 87.
(3) Ibid.
(4) Ibid.
(5) Ibid.


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terça-feira, 15 de novembro de 2011

Animais que aterrorizavam a imaginação dos colonizadores do Brasil (Parte 2): Jacarés

"Era a hora em que a sombra das montanhas sobe às encostas, e em que o jacaré deitado sobre a areia se aquece aos raios do sol."
                                                                                                                         José de Alencar, Guarani

Diferentemente das cobras (que foram assunto de nossa postagem anterior), os jacarés sempre dividiram as opiniões dos colonizadores. Explico: se, por um lado, seu aspecto pareceu amedrontador, com toda aquela possante dentição à mostra, por outro, não demorou que sua caça logo interessasse a muitos que o tiveram na conta de fina iguaria, coisa que não aconteceu com cobra nenhuma. Os trechos de documentos que veremos a seguir demonstram bem essa dupla impressão.
Tendo percorrido o interior do Brasil entre 1825 e 1829 (¹), na condição de desenhista da Expedição Langsdorff, Hércules Florence deixou em seu diário uma interessante descrição de um lago em uma fazenda visitada, cujas águas pareciam bem convidativas, mas cujos habitantes inviabilizavam um banho, ainda que rápido, tudo narrado em vívida linguagem, que bem faz o leitor imaginar facilmente a situação:
"Se por si sós podem esses peixes (²) tirar o desejo de tomar um banho no lago, a presença de enormes jacarés em número superior a tudo quanto até então eu vira, basta para que até em tal nem se pense. Ouve-se-os roncar: veem-se-os no meio dos aguapés das margens, por toda a parte. O lago semelha uma caldeira de azeite a ferver, por tal modo agitam esses anfíbios [sic] a água, nadando rentes à superfície." (³)


Ora, para infelicidade dos jacarés, nem toda a carinha de maldade que têm impediu que os colonizadores se dispusessem a abatê-los, fosse porque, às vezes, os alimentos escasseavam, fosse porque alguns eram mesmo apreciadores de sua carne, sem falar nos usos que em pouco tempo seriam dados ao couro. Isso nos contam monçoeiros que, desde Porto Feliz, partiam via Rio Tietê até longínquas terras no interior do Brasil, como foi o caso, por exemplo, do governador português Dom Rodrigo César de Meneses. De sua ida a Cuiabá em 1726 há um relato feito pelo secretário Gervásio Leite Rebelo, no qual se lê:
"Em 27 e 28 do dito (⁴) se continuou a viagem com bom sucesso, houve bastante caça por ser este rio abundante de aves e de peixe, principalmente capivaras, piranhas e jacarés." (⁵)
Uma pausa aqui é quase obrigatória, para assinalar que, se o trecho mostra claramente que jacarés eram tidos como caça, mostra também que, ou o senhor secretário do governador não revisou o que escreveu, ou não tinha os mais elementares conhecimentos científicos, mesmo para seu tempo: como pode dizer que o rio era pródigo em aves e peixe e exemplificar isto com capivaras, piranhas e jacarés?!


Vamos adiante. Por meio de um outro relato monçoeiro, datado de 1751, desta vez feito por outro governador, Dom Antônio Rolim, o Conde de Azambuja, temos uma descrição de jacarés até detalhada. Compare-a, leitor, portanto, com as fotos desta postagem e veja se esse nobre português andou bem em suas palavras:
"Neste dia se matou o primeiro jacaré, a três ou quatro passos de distância da canoa, que tão pouco espantadiços são. Este, com ser pequeno, pelo que disseram, tinha seis palmos de comprido, quatro pés como lagarto, mais grosso no corpo que um homem pela coxa, rabo comprido à proporção do mais corpo. A pele, pela parte de cima, feita em cintas como armas brancas, é tão dura, que, dando-lhe à mão-tente com uma faca de ponta, apenas lhe entrou grossura de duas moedas de dez réis. A cabeça é comprida, os dentes de cão e sem língua." (⁶)

(1) Já fora, portanto, do tempo colonial.
(2) Os peixes eram piranhas, que serão assunto da próxima postagem.
(3) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 187.
(4) Outubro de 1726.
(5) TAUNAY, Affonso de E. História das Bandeiras Paulistas 3ª ed., vol 3. São Paulo: Melhoramentos, 1975, p. 121.
(6) Ibid., p. 203.


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