Machado de Assis, narrando em Quincas Borba as trágicas aventuras de Rubião na capital do Império, coloca o protagonista na cena da procissão que escoltava um sentenciado à morte, dando a nós, do Século XXI, a oportunidade de visualizar (mentalmente...), qual era o cerimonial adotado, com o propósito de, tanto quanto possível, causar a mais forte impressão nos circunstantes, até pelo terror que inspirava:
"Na esquina da rua dos Ourives deteve-o um ajuntamento de pessoas, e um préstito singular. Um homem, judicialmente trajado, lia em voz alta um papel, a sentença. Havia mais o juiz, um padre, soldados, curiosos. Mas as principais figuras eram dois pretos. Um deles, mediano, magro, tinha as mãos atadas, os olhos baixos, a cor fula, e levava uma corda enlaçada no pescoço; as pontas do baraço iam nas mãos do outro preto. Este outro olhava para a frente e tinha a cor fixa e retinta. Sustentava com galhardia a curiosidade pública. Lido o papel, o préstito seguiu pela rua dos Ourives adiante [...]."
Para encurtar a história, basta dizer que Rubião, horrorizado com o que vê, quer ir embora, mas, ao mesmo tempo, não quer, ou seja, fica preso pela curiosidade, de tal modo que acaba presenciando a execução:
"Eis o réu que sobe à forca. Passou pela turba um frêmito. O carrasco pôs mãos à obra. [...] O instante fatal foi realmente um instante; o réu esperneou, contraiu-se, o algoz cavalgou-o de um modo airoso e destro; passou pela multidão um rumor grande, Rubião deu um grito, e não viu mais nada."
Os leitores devem ter percebido que, em uma execução, a morte era feita espetáculo público, para "servir de exemplo". Exemplo que, aliás, sempre teimou em não funcionar. As mais draconianas dentre as penas jamais tiveram o efeito de banir a criminalidade, e, por suposto, não tinham os resultados esperados, sob esse aspecto, nem mesmo no Brasil Império, onde, como se sabe, as penas atribuídas aos escravos eram sensivelmente mais pesadas que as impostas aos criminosos de condição livre.
Ocorre que a pena de morte tinha - e tem - dentre outros, o grave inconveniente da irreversibilidade. Um homem injustamente acusado de um crime, se sentenciado à prisão, com ou sem trabalhos forçados, podia ser posto em liberdade tão pronto quanto se provava a sua inocência. Não assim com a pena de morte. E, em se tratando da execução de escravos, há pelo menos um relato em que a punição foi indevidamente aplicada, segundo registrou Mello Moraes em sua Crônica Geral do Brasil. Um caso absurdo, como se verá:
"No dia 17 de fevereiro de 1837 foi executada na forca levantada no largo do Moura a sentença de morte imposta pelo júri da Corte do Rio de Janeiro, em sessão de 16 de janeiro do mesmo ano a Domingos Moçambique, cego de ambos os olhos, escravo de Joaquim Francisco de Oliveira, como autor do bárbaro e atroz assassinato de Manuel José da Costa Rego, caixeiro de seu senhor.
Mais tarde, anos depois, verificou-se que esse infeliz preto cego foi supliciado inocente, pela confissão que, no ato de morte, fez ao sacerdote o verdadeiro assassino." (*)
O medo inspirado pela expectativa de uma revolta de escravos era de tal proporção que levava gente supostamente normal às raias da irracionalidade. Não havia espaço para considerações ponderadas quanto a ser possível que o acusado houvesse, de fato, cometido o crime. Alguém tinha que pagar, e, pelo visto não importava muito se era ou não inocente, desde que a supremacia escravocrata fosse mantida, ainda que sob a intimidação da forca.
(*) MORAES, Alexandre José de Mello. Crônica Geral do Brasil vol. 2. Rio de Janeiro: Garnier, 1886, p. 333.
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