Acreditem, senhores leitores: no Brasil Colonial, em que a luta pela sobrevivência era prioridade, havia gente que arranjava tempo e disposição para envolver-se com o estudo da História, que, como veremos, podia ter um uso prático no mínimo curioso. Pedro Taques de Almeida Paes Leme, em sua Nobiliarchia Paulistana, menciona, por exemplo, um certo Manuel Leite da Silva, que "foi completo na língua latina, e excelente poeta com grande instrução da História", além, é claro, de Frei Gaspar da Madre de Deus, que não apenas se interessava pelo estudo da História, mas que se dedicou a escrevê-la, razão pela qual é bem conhecido até hoje. E havia, também, o próprio Pedro Taques, assim como vários outros autores, que ele não menciona, ou porque não conhecia, ou porque não eram da sua amada Capitania de São Vicente - era, como se sabe, ele próprio um crítico mordaz da obra de Rocha Pita.
Nada se compara, porém, ao caso do Padre José Ferraz, ituano que, pelas circunstâncias da vida, afeiçoou-se ao estudo da História (¹). Conta Pedro Taques:
"José Ferraz foi jesuíta na província da Bahia, onde tomou a roupeta (²). Este homem foi de marca maior na sutileza com que penetrou a sagrada teologia. As suas letras o elevaram tanto, que caiu no desacordo de se constituir soberbo e ingrato ao doce leite com que se criara na Companhia, porque faltando-se-lhe com a cadeira de teologia na Bahia, para logo entrou a abandonar aquela retidão de justiça distributiva com que esta religião costuma praticar os seus preceitos com os súditos, publicando que com ele se tinha alterado esta virtude, porque as cadeiras se devem conferir aos mais beneméritos em letras, e não em antiguidade de estudos."
O fato é que o Padre Ferraz, furioso por ver-se preterido, estava já disposto a deixar a Ordem na qual professara, quando, segundo Taques, uma carta do próprio Geral, vinda Roma, ordenou que lhe dessem o posto que almejava. O teimoso homem, porém, nem por isso mudou de ideia:
"Não bastou esta ternura e obséquio sem exemplo para abrandar o gênio áspero ou desconfiado do padre José Ferraz, que, preocupado da sua teima e alucinação, largou a roupeta e, como já era presbítero, veio para São Paulo em hábito de clérigo de São Pedro. Não tardou muito o castigo, porque de repente ensurdeceu, de sorte que, ainda que aos ouvidos lhe disparassem uma peça de artilharia, não ouviria este grande eco [sic]."
Não estranhem os leitores o pensamento de Pedro Taques quanto a ser a surdez do Padre José Ferraz um castigo por sua arrogância. Aqueles eram tempos de profunda religiosidade e era muito comum que qualquer infortúnio fosse interpretado como uma punição vinda do Céu. Taques ainda diria, nessa mesma linha de interpretação dos fatos relacionados à vida do Padre Ferraz:
"Viveu pobre, e acabou na miséria, porque até por fim da carreira da triste vida caiu no vício de se embriagar com aguardente. Jaz sepultado na vila de Itu, sem mais campa que a saudade do seu nome, não pelo que foi, mas pelo que deixou de ser."
Mas continuemos, porque é exatamente agora que vem a parte mais interessante:
"Foi bem instruído na História sacra e profana, a que se aplicou por alívio da sua surdez. Nas humanidades foi eminente, e na poesia latina transcendeu a todos os do seu tempo, e ainda até hoje sem igual."
Ah, senhores leitores, ocorre aqui algo realmente inusitado: um novo tratamento para a surdez!!!
Sim, sim, sim, a intenção provável de Taques era sugerir que o estudo da História trazia algum conforto mental ao pobre surdo, mas não deixa de haver uma certa graça na ideia, não é mesmo?
(1) Era, de acordo com Pedro Taques, nascido em Itu, filho de Isabel de Campos (nascida em Santana de Parnaíba a 11 de dezembro de 1661) e de Manuel Ferraz de Araújo, português nascido no Porto.
Sim, sim, sim, a intenção provável de Taques era sugerir que o estudo da História trazia algum conforto mental ao pobre surdo, mas não deixa de haver uma certa graça na ideia, não é mesmo?
(1) Era, de acordo com Pedro Taques, nascido em Itu, filho de Isabel de Campos (nascida em Santana de Parnaíba a 11 de dezembro de 1661) e de Manuel Ferraz de Araújo, português nascido no Porto.
(2) A expressão "tomar a roupeta" significava tornar-se jesuíta.
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