quinta-feira, 30 de junho de 2011

Os esportes no Brasil do Século XIX e início do Século XX - Parte 1

Em tempos remotos, atividades que hoje classificaríamos como "esportivas" eram, frequentemente, desenvolvidas mais pelo aspecto militar que pelo recreativo, ainda que este último não fosse descartado. Afinal, lançar dardos, cavalgar, lutar, saltar, correr velozmente, eram habilidades que contribuíam com eficácia para a formação de bons soldados. Eventualmente, como no caso da Antiga Grécia, os desportos tinham também um aspecto religioso - as competições realizavam-se em honra dos deuses, o que acabava sendo uma razão a mais para lutar até o limite das forças.
Bem diversos eram os combates de gladiadores nos circos romanos. Se um atleta grego competia pela honra dos deuses, de sua cidade e de si mesmo, os gladiadores já não tinham essa opção - não eram livres, mas escravos, e escravos obrigados a lutar até a morte. Nesse sentido, eram, sim, atletas, mas não desportistas, como hoje o entendemos.
Como tudo passa, passaram os Jogos Olímpicos, Panatenaicos, Ístmicos, e outros mais. Passaram também as lutas de gladiadores em Roma. Deles restaram apenas lembranças, particularmente nas esculturas que ainda assombram o mundo pela beleza e perfeição das formas, aliadas à certeza de que tais obras somente foram esculpidas porque eram reais os modelos em que seus autores se inspiraram.
Em tempos posteriores a negação do corpo tornou-se parte da visão de mundo dominante e, como resultado, a ideia das competições atléticas como exibição da beleza física sofreu um sério abalo. Ainda aconteciam competições, mas estas eram essencialmente relacionadas às habilidades militares e sempre disputadas com muita seriedade, de modo que as mortes de competidores não eram raras. A capacidade física era vista, nesse contexto, como um reflexo das virtudes morais que deviam compor o caráter de um autêntico guerreiro proveniente da nobreza.
Como tudo passa, passaram também as justas medievais. Ainda há, em alguns lugares, quem as realize, mas é só diversão, ao menos para quem assiste.
Aula de esgrima no Quartel da Luz para oficiais
da Força Pública de São Paulo.
Em virtude de sua aplicação militar, a esgrima é
esporte muito conceituado desde longa data. (¹)
Esportes, hoje, são vistos como um importante fator de saúde, parte essencial da educação dos jovens, além, é claro, do aspecto essencialmente competitivo no nível a que se denomina "de alto rendimento", que quase sempre envolve considerável importância econômica, como é o caso das grandes competições profissionais do futebol, tênis, basquete, hipismo, corridas automobilísticas, por exemplo. Ocorre que nem sempre foi assim, e talvez alguém se surpreenda com o fato de que, até meados do século XIX, a maioria das pessoas achava que os esportes eram coisa de crianças e de adultos infantilizados, ou de de gente exibicionista e suficientemente desocupada, com tempo de sobra para andar cultivando os músculos. Havia em alguns países, além disso, desde o século XVII, uma linha de pensamento religioso que considerava um pecado absurdo gastar tempo com esportes, quando coisas mais importantes, relacionadas à salvação da alma, é que deveriam ocupar a mente de pessoas ajuizadas e responsáveis.
Como tudo passa, passaram também as dúvidas quanto à sanidade mental dos desportistas, de modo que atividades físicas - como ginástica e natação - passaram a ser incluídas gradualmente nos programas educacionais, primeiro apenas para rapazes e, mais tarde, não sem um certo escândalo da sociedade, também para meninas. O certo é que, num conjunto de mudanças que sobrevieram em fins do século XIX e início do XX, associadas ao ritmo acelerado da urbanização e industrialização em muitos lugares, os velhos preconceitos relacionados aos esportes foram varridos pouco a pouco, para isso contribuindo bastante o renascimento do olimpismo, em especial desde os primeiros Jogos da era moderna, os de Atenas em 1896(²). Nesse aspecto (como em muitos outros...), o Brasil foi na onda, conforme veremos nas próximas postagens. (³)

(1) A CIGARRA, 21 de abril de 1915.
(2) Os Jogos de Atenas, celebrados em 1896, incluíram Atletismo, Ciclismo, Esgrima, Ginástica, Halterofilismo, Luta Greco-Romana, Natação, Tênis e Tiro, apenas para homens, já que o Barão Pierre de Coubertin tinha verdadeira alergia à presença de mulheres na competição.
(3) Já postei neste blog, há algum tempo, uma pequena série sobre o futebol no início do século XX, razão pela qual me deterei em outras modalidades.


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terça-feira, 28 de junho de 2011

O que Esopo tinha a dizer sobre as relações entre desiguais

Desde os dias da Revolução Francesa até o início do século XX houve, neste planeta, uma linha de pensamento bastante otimista, segundo a qual a humanidade estava indiscutivelmente progredindo, não apenas no plano científico (o que era evidente), mas também em questões mais sutis, ainda que não menos importantes, como a elevação do padrão de relacionamento entre pessoas, organizações e Estados. Embora a ocorrência de duas guerras mundiais tenha significado a derrocada dessa linha de pensamento, há ainda uns poucos que tentam eventualmente ressuscitá-la. Sim, é direito de cada um pensar o que quiser, fato que se constitui, aliás, em legado da já citada Revolução Francesa.
Uma fábula de Esopo (*) talvez ajude a esclarecer o assunto. Vamos, pois a essa historinha oriunda da Antiga Grécia.
Diz o relato de Esopo que um leão, rematado caçador, propôs um acordo a uma vaca, uma cabra e uma ovelha, de modo que tornar-se-iam sócios, caçando juntos e dividindo o que apanhassem. Envaidecidas pela proposta, as três herbívoras arvoradas em predadoras aceitaram prontamente. Consta que, depois de louca correria, capturaram um veado, o qual, conforme o pacto, deveria ser dividido entre os participantes da caçada.


Foi aí que a verdade se revelou. O leão, fazendo o que era compatível com sua natureza felina, partiu o veado em quatro partes, sob os olhares atentos das parceiras. Mas... Mas, longe de entregar a cada um o que se supunha devido, tomou o primeiro pedaço para si, por ser seu como membro do acordo, tomou o segundo, alegando que sua valentia fora, em grande parte, a responsável pelo sucesso da caçada, tomou o terceiro, sob a justificativa de que era o rei dos animais, oferecendo o quarto àquela que ousasse disputá-lo com ele.
Furiosas, vaca, cabra e ovelha quase explodiram em ira, sem, no entanto, poderem fazer qualquer coisa contra o leão. Termina aqui a fábula, vem agora a interpretação, na certeza de que meus ilustres leitores compreendem perfeitamente que Esopo não estava, por suposto, tratando de animais, e sim de homens.
Antes de mais nada, o que é que seres de natureza herbívora têm a fazer junto a um predador? Que igualdade pode nascer dessa desigualdade visceral? Ademais, a conclusão não poderia ser outra - pactos só devem ocorrer quando se tem a força necessária para fazê-los cumprir. Fora disso, é insanidade, seja no âmbito pessoal, institucional, internacional.
Então, leitor, que lhe parece: mudou muito a humanidade desde os antigos gregos? Alguma noção de progresso é aplicável, neste caso? Qual a sua opinião?

(*) Há uma interessante adaptação desta fábula por Monteiro Lobato, na qual figuram animais das matas do Brasil, mas a essência da narrativa é a mesma.


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domingo, 26 de junho de 2011

O uso de documentos históricos no trabalho do historiador

Como os historiadores sabem e interpretam o que aconteceu no passado? No que tange à maior parte do tempo histórico não é, certamente, por terem estado lá...
Para que um historiador possa refletir sobre um determinado acontecimento, ou mesmo encaminhar uma reconstituição, é preciso que haja documentos, relatos, provas, enfim, desse acontecimento, ou que ao menos sejam possíveis inferências a partir de outros fatos já conhecidos. Sem a existência de documentos comprobatórios é quase impossível uma abordagem científica. Máquina do tempo? Por enquanto, só mesmo em filmes e desenhos animados.
A lista de possíveis "documentos históricos" beira o ilimitado. Nela pode incluir-se qualquer coisa que ofereça informações úteis - obras literárias, artesanato, moedas, fotografias, restos de tecidos, antigas construções, registros cartoriais, diários, receitas culinárias, jornais, armas, móveis - vê-se facilmente que, nesse sentido, quase tudo poderia ser útil. Mas cabe aqui uma ressalva muito importante: por mais interessantes que sejam esses artefatos todos, eles não são a História, são apenas instrumentos que contribuem para que o trabalho do historiador seja possível. Nada, mas nada, mesmo, substitui a competência interpretativa de quem analisa os documentos para, a partir deles, construir uma imagem viável do passado.
Vejamos como, eventualmente, o estudo do passado pode ser comprometido por interpretações equivocadas.
Quando um historiador consulta autores antigos, é necessário ter o máximo de cuidado na análise do que escreveram. Nem sempre as coisas aconteceram exatamente como são descritas e somente o treino e a experiência conduzem a uma percepção apurada no sentido de identificar eventuais distorções dos fatos, sejam elas intencionais ou não.
Pode-se exemplificar a questão com a maneira usada pelos povos da Antiguidade ao narrar acontecimentos. Essas narrativas são, é claro, documentos históricos e, portanto, objeto de estudo dos historiadores, mas geralmente não podem ser tomadas ao pé da letra, se o que se pretende é obter uma interpretação apropriada. Por quê? Bem, os povos antigos não adotavam o mesmo conceito de História que nós e, por isso, suas narrativas são, quase sempre, entremeadas de coisas que consideramos ficção, mas que eles tinham na conta de realidade, como a interferência dos deuses nos acontecimentos humanos (os gregos eram ótimos nisso...). Outro fator significativo a ser considerado é a variedade de percepção do tempo em diferentes culturas, sem falar na enorme variedade de calendários, conceitualmente tão diversos do nosso. A propósito, é justamente em decorrência dessa dificuldade de compreensão do conceito de tempo, bem como do calendário de culturas muito diferentes da nossa que surgem, ocasionalmente, interpretações algo esdrúxulas, invocando supostas profecias e arrastando multidões crédulas e desinformadas a uma expectativa absurda de uma derrocada cataclísmica da Terra.
A conclusão inevitável disso tudo, leitor,  é que os humanos do século XXI acham-se muito sábios em relação aos das antigas civilizações, mas, surpreendentemente, gostam de preservar a mesma tendência de misturar fato e ficção, malgrado todo o avanço científico e tecnológico.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

O desmatamento provocado pela agricultura no Período Colonial

Li, há pouco, uma notícia dando conta da preocupação de governantes brasileiros em fazer que os proprietários rurais assumam a responsabilidade pela recuperação de áreas que foram desflorestadas. Ora, leitor, se isso ocorrer - se - iremos ver este país na contramão de tudo o que já ocorreu no passado em termos de preservação de matas e florestas. Coisa óbvia, a colonização do Brasil se fez com base no desmatamento mais escandalosamente despreocupado. Isso não significa que não tenha existido ou não haja agora muita gente consciente, manejando os recursos naturais com responsabilidade, tratando de conciliar o máximo de produtividade na agricultura e na pecuária com a preservação de florestas que, de outro modo, estariam irremediavelmente perdidas. Mas isso, pelo menos até aqui, manifesta-se como exceção, e não regra.
Vejamos. Os engenhos de cana-de-açúcar do período colonial eram consumidores vorazes de quanta madeira se podia encontrar em suas proximidades. É de Antonil o seguinte informe:
"O alimento do fogo é a lenha, e só o Brasil com a imensidade dos matos que tem podia fartar, como fartou por tantos anos e fartará nos tempos vindouros, a tantas fornalhas, quantas são as que se contam nos engenhos da Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro, que comumente moem de dia e de noite, seis, sete, oito e nove meses do ano. E para que se veja quão abundantes são estes matos, só os de Jaguaripe bastam para dar lenha a quantos engenhos há  à beira-mar no Recôncavo da Bahia, e de fato quase todos desta parte só se provêm. Começa o cortar da lenha em Jaguaripe nos princípios de julho, porque na Bahia os engenhos começam a moer em agosto." (¹)
Não, não, padre Antonil, esses matos não eram eternos, quanto suas dimensões fariam supor. Escrevendo pouco mais de cem anos depois, outro sacerdote, Ayres de Casal, observou:
"As canas-de-açúcar, a mandioca, a planta do tabaco, os algodoeiros, são os principais ramos da agricultura, que tem feito diminuir tão consideravelmente as melhores matas." (²)
E, em outro trecho da mesma obra, informa Ayres de Casal:
"É pena ver derrubar uma árvore magnífica [...] só para se utilizar de algumas dúzias de frutos!" (³)
Penso que isto basta para dar uma ideia de quão criteriosa foi no passado a utilização dos recursos florestais. Não posso prever o futuro, mas posso advertir quanto às consequências do prosseguimento dessas práticas seculares. Neste caso, como em muitos outros, manter a tradição não será nenhuma virtude.


(1) ANTONIL, A. J. Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. 

terça-feira, 21 de junho de 2011

Sobre o inverno e suas consequências na República Velha

                                                                 O inverno envolto em mantos de geada
                                                                        Cresta a rosa de amor que além se erguera...
                                                                        Ave de arribação, voa, anuncia
                                                                        Da liberdade a santa primavera.
                                                                                Castro Alves, Adeus, Meu Canto

Hoje, 21 de junho, é, oficialmente, início do verão no Hemisfério Norte e do inverno no Hemisfério Sul. Por tradição, as festividades relacionadas ao Solstício de Verão sempre tiveram maior importância do que suas congêneres associadas ao Solstício de Inverno, o que é facilmente compreensível se tivermos em conta o fato de que as primeiras são celebrações associadas ao sol, à luz e aos dias tépidos, sempre mais apreciados que as longas (em alguns lugares longuíssimas) noites de inverno.
Ainda assim, no caso do Brasil, ao menos nas regiões em que há efetivamente uma estação que pode ser chamada de inverno, a época é agradável, não apenas pela óbvia associação às festas juninas, mas por uma série de pequenos prazeres que vêm junto com os dias frios, como é o caso das comidas típicas da época - sopas, fondues, chocolate quente...
Vale lembrar, porém, que já houve tempo em que a chegada dos meses mais frios era, a cada ano, uma fase de grande apreensão para fazendeiros e, por extensão, para governantes do Brasil, particularmente no Estado de São Paulo, no qual a agricultura cafeeira representava, até fins da década de 1920, um papel econômico preponderante. Expliquemos.
A maioria dos cafeicultores buscava capitais junto a instituições financeiras e, como é prática recorrente na agricultura, saldava seus compromissos com a venda da safra. Entretanto, em relação ao café, havia um problema gravíssimo, ou seja, a geada, que por vezes comparecia nos meses mais frios, o que no caso de São Paulo, equivale a dizer, a partir de maio. Nesse caso, um cafeicultor de levara três ou quatro anos formando um cafezal, esperando talvez a partir do quinto ano obter lucros, corria o sério risco de ver seu empreendimento fracassar sob uma eventual geada que podia danificar toda a safra, o que significava afundar em dívidas e até perder a propriedade. Daí o pavor que, nas décadas iniciais do século XX, quando as condições de previsão do tempo eram meramente empíricas, tomava conta dos agricultores quando a temperatura despencava, fossem eles pequenos proprietários ou grandes fazendeiros politicamente muito influentes.
Fato curioso é que, se a safra era ruim, devido às geadas, os cafeicultores tinham problemas, mas se era muito boa, havia problemas também. Por quê? Simples, a safra ruim trazia endividamento, a safra muito boa trazia superprodução e consequente queda nos preços de mercado, a despeito da intervenção estatal no sentido de frear a expansão dos cafezais e garantir o preço mínimo para o produto. Pode imaginar, leitor, o quanto a economia brasileira era refém do café, produto absolutamente dominante na pauta de exportações durante a República Velha!
Mudando levemente de assunto (você verá que quase nadinha), as primeiras décadas do século XX, com a nova realidade trazida pela imigração, foram marcadas por um crescimento - sutil, a princípio - no grau de consciência social. O país saíra, tardiamente, da lógica do escravismo, que muita gente considerava "natural", para uma nova situação em termos de relações de trabalho e de estratificação social. Assim, coisas que nem eram observadas com muito cuidado, começaram, aos poucos, a chamar a atenção. Veja, leitor, essa capa de uma edição de A Cigarra:


Quem quer que tome tempo para analisar as capas da revista em seus muitos números de anos anteriores verá o quanto era ousada a crítica embutida nessa edição (*). Era 1919. O mundo, não só o Brasil, passava por grandes transformações.

(*) Edição de sexta-feira, 1º de agosto de 1919. 
Observação importante: a crítica social contida na capa em análise não invalida o fato de que animais domésticos devem receber proteção adequada no inverno. Ao contrário de animais que vivem livres na natureza, eles não têm como procurar por si mesmos uma caverna para abrigo ou outra proteção qualquer, portanto precisam de nosso cuidado.


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domingo, 19 de junho de 2011

O vestuário dos escravos no Brasil - Parte 3

"Fazia de rainha Florência, que nesse dia triunfava sobre a rival, a mucama Rosa. O rei era o pajem de um ricaço da vizinhança; e todos os outros personagens, cativos das fazendas próximas.
O luxo que ostentavam fora pago, parte com as suas economias, e parte com dádivas dos senhores, cuja vaidade se personificava nos próprios escravos. Cada um desses ricos fazendeiros se desvanecia da admiração que sentia o povo pelas roupas vistosas que traziam galhardamente seus pajens, e pelos soberbos cavalos que eles meneavam com certo donaire."
José de Alencar, Til


Se, nos antigos engenhos açucareiros, os escravos eram, com frequência, deixados em situação precária quanto ao vestuário, nas fazendas de café, ao longo do século XIX, a situação variava, já que alguns senhores de escravos mais bem posicionados tanto social quanto politicamente começaram a preocupar-se com o que trajavam seus escravos, ao menos em eventos públicos. Tornava-se constrangedor que um fazendeiro poderoso permitisse que, diante da sociedade, seus escravos aparecessem usando pouco mais que trapos, principalmente quando serviam junto à família escravocrata, na sede da fazenda. Vale o mesmo para escravos que trabalhavam nas residências de figuras de destaque em áreas urbanas, particularmente na Corte. Assim, não são de todo incomuns as representações de época em que escravos aparecem bem vestidos, ao lado de seus senhores e/ou senhoras, como nestas cenas registradas por Debret:

Funcionário importante saindo a passear com a família. Os escravos acompanham. (¹)

Bebê branco é levado por escravos para ser batizado. (²)

Dama é levada por escravos em uma cadeirinha de arruar. (²)

Observe bem, leitor: há, apesar de tudo, um sinal óbvio de que eram escravos, e não libertos, por melhores que fossem as roupas. Já descobriu? A marca da escravidão está estampada no fato de que, devido à sua condição, não usavam sapatos.

(1) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, v. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, v. 3. Paris: Firmin Didot Frères, 1839. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quinta-feira, 16 de junho de 2011

O vestuário dos escravos no Brasil - Parte 2

Ao longo do século XIX proliferaram os jornais, ao menos nas cidades mais importantes do Império do Brasil. Como ocorre ainda hoje, uma parte razoável dessas publicações era dedicada a anúncios e propagandas, que devidamente estudados fornecem informações muito interessantes sobre a época.
Entre os anúncios que se publicavam eram assíduos aqueles relativos a escravos que haviam fugido. Seguiam um certo padrão, informando coisas como nome do escravo e do proprietário, data e local de onde fugira, características físicas do escravo e, frequentemente, a roupa que vestia na ocasião da fuga. Selecionei alguns desses anúncios que transcrevo a seguir, a título de amostragem,  já que esclarecem qual era a roupa comum dos escravos, particularmente dos que trabalhavam em fazendas, em meados do século XIX. São uma fonte de informação mas, ao mesmo tempo, mostram com clareza parte do horror do escravismo, naquilo que tinha de pior: os tentáculos do esquema de captura daqueles que ousavam fugir.

"Em 12 de maio de 1852 fugiram [...] dois escravos:
Um mulato de nome Marcino [...], levou uma faca de cabo de prata e uma pistola garrucha, uma capa de pano escocês além de mais roupa fina [...].
Outro [...] levou chapéu de minas, capa redonda, um pala branco e outro pintado de lã usado e sem forro, um paletó de brim e mais roupa grossa e fina [...]."
(Aurora Paulistana, 27 de maio de 1852)

"50$000 de gratificação a quem aprender um escravo de nome José [...]: levou roupa de algodão e poncho velho de forro encarnado."
(Aurora Paulistana, 28 de julho de 1852)

"Fugiu no dia 4 de agosto corrente um escravo [...] de nome Sabino [...], levou paletó de pano azul, forrado de baetilha xadrez e calça de algodão azul trançado [...]."
(Aurora Paulistana, 21 de agosto de 1852)

"Em princípio de maio do corrente ano fugiram da fazenda [...] dois escravos [...].
1º Miguel [...] Quando fugiu levou vestido calça e camisa de algodão, camisa e coberta de baeta azul e um ponche velho, mas pode ter já mudado de traje.
2º Francisco [...] Quando fugiu levou vestido calça e camisa de algodão mas pode ter já mudado de vestuário. [...] Ambos eles têm sinais de terem sido castigados por serem muito fujões."
(Aurora Paulistana, 21 de agosto de 1852)

"Fugiu [...] um escravo crioulo de nome Gabriel [...] com um sinal de gancho no pescoço e outro no pé defronte do tornozelo. Levou consigo um ponchinho velho e sem forro, duas camisas das quais uma de algodão, por baixo de uma de baeta azul, levou também calça de algodão da terra e um chapéu de pano branco velho e já rasgado."
(Aurora Paulistana, 29 de agosto de 1852)

"Fugiu [...] um escravo mulato de nome Amaro [...], foi vestido de camisa e calça de algodão, chapéu de palha, levou um poncho de pano azul e forro de baeta da mesma cor, e igualmente levou uma foice."
(Aurora Paulistana, 25 de outubro de 1852)

"Fugiu [...] um escravo de nome Antônio [...], levou uma baeta azul, roupa fina e grossa, chapéu de palha [...]."
(Aurora Paulistana, 25 de outubro de 1852)

"Fugiu em princípios de setembro deste ano [...] um escravo mulato de nome Mariano [...] levou uma pistola, uma faca, cartucheira com fivela de prata e vestido um poncho de forro vermelho, calça de algodão riscado, chapéu branco de copa redonda."
(Aurora Paulistana, 23 de dezembro de 1852)

"Gratifica-se generosamente a pessoa que apreender o escravo mulato de nome Belisário [...].
Esse escravo fugiu [...] trazendo camisa de chita e calça de casimira e cobertor francês branco. "
(Correio Paulistano, 5 de fevereiro de 1867)

Percebe-se facilmente uma regularidade - tecidos de algodão para calças e camisas, a recorrente camisa de baeta azul, poncho vermelho, algum tipo de chapéu. É de se notar que, na região serrana do Rio de Janeiro e em São Paulo, parte da indumentária comum aos escravos era um poncho de tecido espesso e resistente, em virtude das noites frias do inverno, embora essa peça não figurasse sempre entre os cativos que viviam regiões mais quentes. Podem ser percebidas algumas outras variações nos anúncios, mas eventuais discrepâncias não significam uma obrigatória variante do padrão, já que as roupas adicionais que um escravo levava ao fugir não tinham,  necessariamente, que ser suas. Em caso de fugas planejadas, um escravo podia tentar ocultar algumas peças durante certo tempo, a fim de ter como substituir as vestes usadas ao escapulir, o que aumentaria um pouco a probabilidade de sucesso em ocultar-se dos caçadores de recompensas que certamente iriam procurá-lo.


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