quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Quem foi João Ramalho

Se existe uma personagem do primeiro século da colonização sobre quem pairam dúvidas, essa é, certamente, João Ramalho. Já foi descrito como condenado a degredo, como náufrago, até como fugitivo. É fato, porém, que, em 1532, quando Martim Afonso de Sousa fundou São Vicente, já esse homem vivia há tempos no Brasil e, perfeitamente adaptado ao modo de vida dos indígenas, entre eles constituíra família numerosa. 
Frei Gaspar da Madre de Deus faz um relato pitoresco do encontro de João Ramalho com a gente de Martim Afonso: Índios que andavam à pesca veem chegar a esquadra portuguesa, correm à procura de um esconderijo e observam, pasmados, o ritual de fundação de São Vicente. A toda pressa percorrem o brutal Caminho do Mar, indo dar a notícia a Tibiriçá, seu chefe, que, de imediato, convoca as tribos aliadas para fazer guerra e expulsar os invasores. É aí que entra em cena João Ramalho:
"Perto de Tibiriçá morava João Ramalho, aquele português que aqui chegara muitos anos antes; ele fazia vida marital com uma filha do régulo [o cacique Tibiriçá], e este lhe participou sem demora a notícia que acabava de receber. Ouviu-a Ramalho com alvoroço grande, porque logo assentou que a esquadra era de portugueses [...]. Firme nesta opinião, e desejoso de evitar a guerra que se dispunha contra os brancos, solicitou o socorro, onde os bárbaros [sic] buscavam o aumento das suas forças. Depois de persuadir o sogro de que os forasteiros eram seus nacionais [...], propôs-lhe grandes conveniências que poderiam resultar de receber benigno aos hóspedes desconhecidos [...]." (¹)
O mesmo autor assevera que, ao terceiro dia, a contar do desembarque de Martim Afonso, é que João Ramalho e Tibiriçá, à frente de quinhentos índios flecheiros, chegaram ao lugar em que estavam os portugueses:
"Apresentou-se Ramalho ao capitão-mor, narrou-lhe os sucessos passados da sua vida e assegurou-lhe que, a instâncias suas, vinha o senhor da terra [Tibiriçá] a defendê-los com os índios que ali via." (²)
Percebam, leitores, que, para frei Gaspar da Madre de Deus, beneditino, nascido em São Vicente no começo do Século XVIII, o encontro de João Ramalho e Martim Afonso foi amigável e oportuno, porque teria impedido que os povos indígenas da região se pusessem em armas contra os recém-chegados lusitanos. Seu registro deve refletir, até certo ponto, as lembranças do acontecimento que sobreviveram por muitos anos. 
A Nobiliarchia Paulistana (também de um autor do Século XVIII, Pedro Taques de Almeida Paes Leme), faz referência a João Ramalho, embora incorra em um erro evidente, conforme já veremos:
"[...] João Ramalho, o progenitor de muitas famílias de São Paulo, que foi o fundador da povoação de Santo André da Borda do Campo, que se aclamou vila em 8 de abril de 1553, sendo então o dito Ramalho guarda-mor e alcaide-mor do campo, e tinha o foro de cavaleiro [...]. Este João Ramalho veio de Portugal (era natural de Barcelos, comarca de Viseu), na companhia de Martim Afonso de Sousa, no fim do ano de 1530 [...]."
Ora, não é possível que João Ramalho viesse com Martim Afonso e, ao mesmo tempo, fosse recebê-lo em companhia de algumas centenas de índios! Ao que se sabe, porém, João Ramalho foi mesmo o fundador de Santo André da Borda do Campo, uma povoação que, por enfrentar dificuldades para a defesa contra ataques dos tamoios, acabou desaparecendo. Seus moradores receberam ordem para ir viver em São Paulo de Piratininga. 
Então, problemas à vista!...
O ponto mais controvertido a respeito do português que vivia como índio está relacionado às suas divergências com os jesuítas, mandados a São Vicente para catequizar indígenas. Para perfeita clareza, é preciso dizer que os missionários detestavam João Ramalho (sendo o inverso, ao que parece, igualmente verdade), a quem consideravam um inimigo da doutrinação dos povos indígenas e um perfeito mau exemplo. Basta ver o que disse Anchieta, em uma carta escrita em São Paulo de Piratininga no ano de 1554:
"[...] Uns certos cristãos, nascidos de pai português e de mãe brasílica, que estão distantes de nós nove milhas, em uma povoação de portugueses, não cessam, juntamente com seu pai, de empregar contínuos esforços para derrubar a obra que, ajudando-nos a graça de Deus, trabalhamos por edificar, persuadindo aos próprios catecúmenos com assíduos e nefandos conselhos para que se apartem de nós [...], e não deem o menor crédito a nós, que para aqui fomos mandados por causa da nossa perversidade. Com estas e outras semelhantes, fazem que uns não acreditem na pregação da palavra de Deus, e outros, que já víamos entrarem para o aprisco de Cristo, voltem aos antigos costumes, e fujam de nós para que possam mais livremente viver." (³)
"Para que possam mais livremente viver" - interessante essa observação, não é mesmo, meus leitores? Vejam que nenhum nome é mencionado, mas a situação, bem conhecida, indica que a família causadora de problemas era mesmo a de João Ramalho. Um fator importante, nesse caso, é que Anchieta foi um contemporâneo de João Ramalho e, pelo visto, conhecia muito bem o sujeito. Se, no entanto, restar alguma dúvida quanto à identidade do "pai português", temos o recurso aos registros do padre Simão de Vasconcelos, que, valendo-se da documentação escrita de que sua Ordem dispunha, bem como de testemunhos orais, escreveu, no Século XVII, a Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil, na qual encontramos:
"Havia em São Vicente um João Ramalho, homem por graves crimes infame, e atualmente excomungado. Mandou-lhe o padre Leonardo [Nunes] pedir com cortesia, fosse servido sair da igreja, porque pudesse ele celebrar sacrifício, pois não podia em sua presença; fê-lo assim, e celebrou o padre. Porém dois filhos seus, mamelucos, dados por afrontados, determinaram castigar no servo do Senhor a injúria que tinham por feita ao pai [...]." (⁴)
Mas não é só. Descrevendo, em outro trecho, a chegada de Manuel da Nóbrega a São Vicente em 1553, acrescentou:
"Aquele famoso João Ramalho, homem rico na terra, mas infame nos vícios, amancebado público por quase quarenta anos, e de ordinário por essa causa excomungado [...], lembrado agora de seus antigos ódios, e tendo ainda vivo no peito o agravo que cuidou lhe fizera o padre quando o mandou avisar se saísse da igreja, porque ele não podia exercer o sacrifício do altar, por estar censurado; entre as alegrias e parabéns com que o povo recebia por hóspede o padre Nóbrega, andava ele com a caterva de seus filhos, muitos em número, e todos de má casta, mamelucos ilegítimos e desalmados, com arcos, flechas e gritarias, espalhando de alguns deles [os padres da Companhia] crimes péssimos e indignos de seculares, quanto mais de pessoas religiosas [...]." (⁵)
O que se pode notar, de pronto, é que, vivendo em um tempo no qual todas as personagens dessa história já haviam morrido, Simão de Vasconcelos deu eco às informações que denunciavam João Ramalho e sua vasta descendência como uma horda de facínoras, cujo objetivo era emperrar o trabalho dos jesuítas. Não é impossível que, da parte do português, houvesse algum receio de perder a influência considerável que adquirira entre os ameríndios, com os quais se aparentara; por outro lado, levando em conta os costumes que então vigoravam entre europeus, não surpreende que, para os jesuítas, fosse um escândalo a existência de um cristão que, vivendo entre os indígenas, chegara, por assim dizer, a ser um deles. Algum tempo no Brasil, porém, acabaria mostrando aos missionários que, se queriam sobreviver e catequizar, precisariam, até certo ponto, adotar alguns costumes da terra. Não como João Ramalho, porém.

(1) MADRE DE DEUS, Frei Gaspar da. Memórias para a História da Capitania de São Vicente, Hoje Chamada de São Paulo, do Estado do Brasil. Lisboa: Typografia da Academia, 1797, p. 30.
(2) Ibid., p. 31.
(3) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 46.
(4) VASCONCELOS, Pe. Simão de S.J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 1, 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, p. 47.
(5) Ibid., p. 75.


Veja também:

4 comentários:

  1. Esta coisa de andar a mexer em papéis velhos pode meter-nos no maior dos sarilhos " á Ramalho".
    Como aparecem dois "Ramalho" ocorreu-me a ideia de que os relatos podem ser ambos verídicos.
    Bastaria que para tal...se tratasse de duas pessoas diferentes.
    Em Portugal pessoas com o mesmíssimo nome é fenómeno relho e velho.
    Não faltam, por cá, "Joões Ramalho"

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    1. Há, no Brasil, muita gente com nomes idênticos. Outro problema semelhante está relacionado a lugares e acidentes geográficos muito distantes, mas de mesmo nome (há uma quantidade enorme, por exemplo, de rios chamados "Grande"). Neste caso, porém, é mesmo uma só pessoa. As diferenças de descrição estão relacionadas ao ponto de vista dos vários autores. Ou seja, quem simpatizava com João Ramalho fazia descrição favorável, enquanto que alguns jesuítas, que lhe votavam ódio mortal, só podiam escrever dele as piores coisas.

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  2. Há sempre tantas versões da história quantos observadores. Interessante seria ler a versão do João Ramalho. Mas, provavelmente, estaria muito ocupado a procriar para se tornar um autor.
    Beijinho
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    1. Hahaha... Esta era uma das acusações contra ele!
      Falando sério: ao que se sabe, não deixou registros escritos de sua aventurosa vida no Brasil.

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