sexta-feira, 20 de março de 2015

A catequese como justificativa para a escravidão no Brasil Colonial

Um argumento recorrente para justificar a escravidão de africanos no Brasil Colonial era de que, vindo à América, os escravizados seriam mais facilmente doutrinados na fé cristã (!!!). Nuno Marques Pereira, autor do Compêndio Narrativo do Peregrino da América, obra de grande sucesso no Século XVIII, declarou, sem rodeios:
"E também permite sua divina misericórdia que muitos destes gentios sejam trazidos às terras dos católicos para os ensinarem e doutrinarem, e lhes tirarem os ritos gentílicos, que lá tinham aprendido com seus pais." (¹) 
Essa ideia, hoje, pode parecer absurda - colocava-se em Deus a responsabilidade pela escravidão - mas é fato que foi amplamente empregada, até mesmo por religiosos, e, portanto, não era coisa apenas de escravocratas que queriam acalmar a consciência, até porque os proprietários de escravos não tinham por costume ver algo de errado na apropriação do trabalho de um ser humano por outro. Para eles, escravos eram sua propriedade, e nada mais. 
Era obrigação dos senhores providenciar assistência religiosa para seus escravos, mas a maioria não tomava qualquer atitude nesse sentido. Até mesmo o dever (imposto pela Igreja) de conceder descanso aos escravos nos domingos e feriados religiosos era desconsiderado. Afinal, não havia qualquer fiscalização e, pensava-se, escravos existiam para trabalhar.
No começo do Século XVIII Antonil observou:
"Outros são tão pouco cuidadosos do que pertence à salvação dos seus escravos, que os têm por muito tempo no canavial ou no engenho sem batismo." (²) 
Entende-se que Antonil, ele próprio um jesuíta, escandalizava-se com o pouco caso dos senhores em questões de fé. E acrescentava, recordando aos poderosos que de tudo dariam conta no Juízo Final:
"Dizem os senhores que estes [os escravos] não são capazes de aprender a confessar-se, nem de pedir perdão a Deus, nem de rezar pelas contas, nem de saber os dez mandamentos; tudo por falta de ensino e por não considerarem a conta grande que de tudo isto hão de dar a Deus, pois (como diz São Paulo), sendo cristãos e descuidando-se de seus escravos, se hão com eles pior do que se fossem infiéis." (³)
O tempo evidenciava que o tal argumento da catequese para justificar a escravidão não passava de um embuste, a tal ponto que, já no Século XIX, o padre Ayres de Casal viria a afirmar que, ao contrário do que geralmente se aceitava, a escravidão era, sim, um impedimento à propagação da fé cristã:
"Convém-se que esta gente é um mal moral, um obstáculo ao aumento da população branca, e que enquanto escravos, não podem ser bons cristãos, nem vassalos fiéis." (⁴)
Deixando de lado o quanto o dizer de Ayres de Casal soa preconceituoso a um leitor do Século XXI, vale notar que, em seu tempo, já se levantava o argumento de que a escravidão não era somente um impedimento à religião. Tornava também impossível que a população cativa pudesse servir aos interesses do rei.

(1) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, p. 119.
(2) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 25.
(3) Ibid.
(4) CASAL, Manuel Ayres de. Corografia Brasílica,  vol. 1. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 60.

2 comentários:

  1. Marta, no final do seu texto tem um trecho em que diz que a escravidão de negros era um obstáculo a propagação da fé cristã, mas em quanto aos índios e na América espanhola? Havia já no século XIX esse pensamento em relação a essas ''outras'' escravidões? :) ótimo post por sinal, bem informativo!

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    1. Penso que o padre Ayres de Casal percebia que a escravidão, tolhendo o livre exercício da vontade, impedia que os escravizados tanto aprendessem como pudessem exercer sua fé de maneira adequada. É interessante que ele observa o mesmo em relação ao exercício da obediência ao monarca. Em suma, o pensamento de Ayres de Casal era de que escravos estavam submetidos à vontade de seus senhores, não à de Deus ou do Rei, daí a inconveniência do escravismo.
      Na América Espanhola havia, também, uma imposição formal da religião dos colonizadores, mas a resistência sempre foi grande porque os espanhóis tiveram de defrontar-se com civilizações muito estruturadas (astecas e incas, por exemplo). Oficialmente, a catequese devia ser incentivada, aconteciam "conversões" forçadas (e, a partir daí, a repressão entrava em cena - a Inquisição na América Espanhola foi muito mais severa que no Brasil). Porém, em se tratando de indígenas submetidos aos sistemas da Encomienda e da Mita, o que se esperava deles era trabalho (como sempre), e a religião era, via de regra, apenas uma formalidade.

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